.:: Relendo os clássicos brasileiros: os enfrentamentos no tempo e permanências

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Um feliz Natal e um 2004 repleto de realizações e partilha. Com carinho, Mara
20.4.06

[ Convite para estar junto e divulgar ]
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Os Núcleos:
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Movimentos Sociais-TRAMSE
Núcleo de Estudos de Política e Gestão da Educação-NEPGE, ambos do PPGEDU/FACED/UFRGS e o
Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o Trabalho do PPS/IFCH/UFRGS
convidam para a palestra e o lançamento do livro:
Desemprego: Trajetórias, Biografias, Mobilização
Palestrante Drª Nadya Araújo Guimarães
Professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de São Paulo-USP
Dia 02 de maio de 2006, as 15h
na sala 101 da FACED/UFRGS
Av. Paulo Gama, 110, Campus Central

FOLDER para divulgação encontra-se disponível em rede.





15.7.05

[ Todo mundo vai virar suco ]
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Tese examina como a teoria econômica transformou o conhecimento em capital e a pessoa, em empresa

"O capital intelectual é a matéria-prima da qual são feitos os resultados financeiros" (Thomas Stewart)

Ganhar dinheiro na bolsa, converter os lucros no carro do ano, realizar viagens internacionais também todo ano -uma passagem obrigatória por Nova York ou conhecer lugares exóticos do Oriente-, comer ao menos uma vez nos restaurantes dos grandes chefs franceses da nouvelle cuisine, colecionar quadros de artistas emergentes, quiçá ouvir óperas no festival anual de Salzburg. Esta era a parte do ideal da vida dos "colarinhos brancos" que ganhavam dinheiro na década de 70 -os yuppies. Uma escada-rolante ascendente, que levava ao paraíso do consumo, seria a melhor metáfora para descrever sua percepção da vida naqueles anos já distantes do século passado.

Trinta anos depois, o personagem que está na posição daquele yuppie -o executivo de uma empresa transnacional- pinta em novas cores o seu mundo: "A dinâmica hoje do mercado é uma escada rolante que desce. É para a empresa dessa forma, em relação ao mercado, e para a pessoa com relação à empresa. É tudo uma cadeia". Agora, já não é empregado, mas "associado" ou "colaborador" da transnacional. "Terceirizado", como dizemos caboclamente. Tem lá o contrato entre a sua "pessoa jurídica" e a transnacional, mas o vínculo é tênue.
- por Carlos Alberto Dória

[leia mais]





17.5.05

[ Convite: Políticas Públicas em Educação Profissional ]
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No próximo dia 9 de junho, quinta feira, das 8 horas às 10 horas, na sala 603, estará palestrando com os interessados na temática acima, como promoção de nosso Núcleo de estudos e experiências em Trabalho, Movimentos Sociais, Saúde e Educação - TRAMSE, a Professora
IVONE MARIA ELIAS MOREYRA, Mestre em Educação Escolar,
Diretora de Educação Profissional e Tecnológica da Secretaria de Educação Média e tecnológica do
Ministério da Educação entre 2003 e 2004.
A atividade será promovida plo Núcleo, com o apoio da Linha de Pesquisa, sob a coordenação do
Prof. Dr. Augusto Nibaldo Silva Triviños, e a organização da doutoranda Magda Colao.
Divulguem aos interessados.
Abraços,
Carmen





21.3.05

[ Trabalho e educação escolar em Três de Maio ]
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Compartilhando minha viagem para o referido município, quando estive a falar e produzir o registro das reflexoões sobre Trabalho e Educação Escolar, digo que me impressionou a seca ao longo do caminho. O verde das folhas recomeça a brotar mas os frutos e as flores estão secos.
Por vezes, nosso fazer como professoras e professores sofre o mesmo processo. Vemos nossos alunos - professores reproduzirem na sala de aula o mesmo fazer que acabam de criticar nos seus alunos. Como recriar nossos saberes de modo a não apenas reproduzir sociedades, relações e comportamentos mas transformar nossa sala de aula, nossas relações e contribuir para que nossa sociedade possa ser mais justa? Mais um sonho!





5.11.04
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ELABORAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DO CURRÍCULO:
alguns enfoques e problemas atuais
Nereide Saviani
No conceito de currículo estão presentes, entre outras, as idéias de: conjunto de matérias/disciplinas escolares e respectivos programas; conjunto de atividades/experiências desenvolvidas na escola; conjunto de conhecimentos selecionados da cultura global da sociedade e organizados para fins de ensino/aprendizagem, constituindo-se num tipo peculiar de saber - o saber escolar.
Em geral, os elementos acima são abordados de forma segmentada, com o privilegiamento de um(ns) em detrimento de outros. Mas há esforços no sentido de concebê-los em unidade, na dialética do processo pedagógico - que envolve a relação currículo/didática como elementos do saber escolar. De qualquer modo, a visão de unidade não significa diluição das especificidades. Do ponto de vista do currículo, a especificidade estaria na questão dos conteúdos (que guardam relação com os diversos domínios da cultura). Do ponto de vista da didática, na definição dos métodos e processos de ensino.
O tratamento dicotomizado dos diversos elementos que compõem o saber escolar tem dificultado a análise dos problemas educacionais, a reflexão sobre suas causas e o vislumbre de indicadores para sua superação. Da visão fragmentária, que separa meios e fins, conteúdo e método, sujeito e objeto, teoria e prática, quantidade e qualidade - e tantos ouros componentes do processo pedagógico - decorrem interpretações superficiais, não raro falseadas, das questões educacionais, remetendo para "soluções" parcializadas, ou, quando muito, ecléticas, em propostas pedagógicas que justapõem, aleatoriamente, idéias/propostas oriundas de diversas matrizes teóricas, às vezes antagônicas.
Essa visão fragmentária é também a que separa o saber escolar de outros saberes que compõem a cultura global da sociedade. Da mera constatação, à crítica do que se detecta, passando-se pela defesa desta ou daquela situação e pela indicação do que o saber escolar deve/deveria ser, tal separação expressa-se sob diversas formas, tais como: a idéia de que a escola propõe-se a trabalhar saberes elaborados fora dela, transpondo-os tais e quais para as situações de ensino/aprendizagem; a de que a escola elabora um saber todo peculiar, cuja maior ou menor ligação com outros saberes depende dos objetivos, necessidades, interesses a ela intrínsecos e/ou extrínsecos; a de que a escola produz seu próprio saber, de forma autônoma, segundo o desenrolar das relações que se estabelecem no seu interior; a de que o processo pedagógico restringe-se a uma transposição didática dos saberes da sociedade em saber escolar.
A literatura acerca do tema do currículo envolve estudos com os mais diferentes enfoques, por exemplo: os que operam a crítica de como a escola organiza o currículo, indicando ou não como, na perspectiva defendida, deveria fazê-lo; os que buscam desvendar os processos e vicissitudes da elaboração e aplicação do currículo, através da análise de sua
história; os que se dedicam à organização de inventário-síntese de diversas abordagens e perspectivas
Nessa literatura é possível, também, constatar modos diferenciados de encarar o problema da constituição e difusão do saber escolar e de sua organização em currículos e programas. Há estudos que privilegiam os aspectos sociológicos, centram-se na relação escola/sociedade e analisam o currículo como reflexo dos (ou voltados para os) interesses e necessidades do indivíduo e/ou da sociedade. Outros, enfatizam os aspectos psicológicos, os relativos à aprendizagem, e analisam o currículo segundo o atendimento às características, necessidades e interesses do aluno, voltando-se para o exame da estrutura do sujeito cognoscente. Há, ainda, os que priorizam aspectos lógicos, os relativos ao conteúdo, e analisam o currículo segundo o atendimento às características do objeto cognoscível (a estrutura das matérias de ensino - áreas do conhecimento/disciplinas escolares). Num quarto tipo, encontram-se estudos que procuram contemplar os três anteriores, englobando aspectos sociológicos, psicológicos e lógicos da elaboração e aplicação do currículo - seja numa visão eclética, seja numa tentativa de síntese dialética.
A análise da problemática curricular vem contando com a contribuição de um campo recente de estudos e pesquisas: o da história do currículo e das disciplinas escolares - que se dedica não somente ao exame da evolução do "pensamento curricular" ou da história das idéias sobre o currículo e as matérias escolares, mas também ao estudo dos processos pelos quais vêm se dando a elaboração do currículo, os esforços de sua consolidação e os intentos de elaboração de reformas curriculares, bem como dos processos de constituição, "assentamento", mudança e até desaparecimento/ressurgimento das disciplinas escolares.
A literatura que analisa a história do currículo situa fatores que contribuem para conformar o perfil e definir o caráter do ensino e do currículo que a ele corresponda. Dependendo do tipo de ensino enfatizado (propedêutico ou de caráter "final"), da formação que se quer privilegiar (humanística, científica ou técnica), das necessidades a serem atendidas (do indivíduo e sua família, do Estado ou demandas do mercado) - diferenciam-se o caráter e a modalidade do currículo, distinguindo-se, também: as matérias, seu valor relativo e respectivos programas; a destinação de recursos financeiros e materiais às atividades especificamente curriculares; as formas e critérios de avaliação; as normas disciplinares; os modos de acompanhamento e controle das unidades escolares; o lugar e o papel dos saberes elementares (a leitura, a escrita, o cálculo), bem como o caráter e a freqüência das campanhas de alfabetização.
As obras que tratam da história das matérias escolares apontam fatores que determinam a evolução de uma disciplina ou área de estudo, sua inclusão/exclusão e valor relativo em currículos determinados. São fatores ligados tanto às finalidades educacionais da sociedade (exigências do regime sócio-político, da religião, da família, do mercado) quanto às específicas da escola, incluindo: demandas por tipos diferentes de ensino; características e transformações sociais e culturais dos públicos escolares; renovação/estabilidade do corpo docente; sistemática de avaliação e seleção (provas, exames, vestibulares, concursos); condições materiais (construções escolares, mobiliário, equipamentos) e recursos, com destaque para o livro didático. Entram em jogo, também, interesses de grupos diversos da sociedade: ação e prestígio de lideranças intelectuais; exigências e pleitos de professores e especialistas da educação; influência de centros acadêmicos de produção teórica/técnica e de centros de formação de profissionais das várias áreas; interferências de entidades culturais e associações de profissionais; além da política editorial de cada área.
Os estudos que abordam as questões curriculares na perspectiva histórica têm possibilitado: a avaliação dos impactos das propostas curriculares na prática escolar; o exame do discurso pedagógico, das regulamentações, das transformações no próprio campo, em relação com as mudanças no cenário educacional e no contexto social mais amplo; a captação de contradições, conflitos, relações de poder e prestígio envolvidos na tomada de decisões curriculares e no processo de constituição das disciplinas, sua instauração num currículo dado e o lugar de cada uma na hierarquia das matérias que o compõem; a desmistificação de idéias apresentadas (muitas vezes prescritas, pontificadas) em boa parte das produções teóricas e/ou políticas que discutem problemas educacionais.
Tais estudos revelam, também, que a elaboração e a implementação do curriculo (envolvendo a disposição das matérias e respectivos programas, bem como a seleção de métodos, técnicas, procedimentos, recursos necessários a seu desenvolvimento) resultam de processos conflituosos e de decisões negociadas. Com essa revelação, desmistifica-se a visão do currículo como mero resultado de decisões científico-racionais, baseadas no consenso (a idéia da possibilidade de elaboração de currículos ideais, perfeitamente amoldados numa dada teoria e aplicáveis tal qual concebidos), contribuindo para colocar-se sob suspeita o presumível caráter "democrático" das "consultas" feitas ao professorado acerca de propostas curriculares elaboradas por técnicos "especializados". Ao mesmo tempo, apontam os limites das concepções que se restringem à idéia do conflito (na visão da irremediável determinação do processo pedagógico por interesses dominantes e do limitado papel do professor como denunciador dos mecanismos de exploração), contribuindo para admitir-se a perspectiva de ocupação de espaços democráticos e forçar-se a negociação no sentido de atender aos interesses populares.
Outra descoberta dos estudos históricos é a de que há uma tendência, na elaboração do currículo e valorização de seus elementos - bem como na disposição/hierarquização das disciplinas escolares - a se obedecerem normas, critérios, modelos estabelecidos mundialmente. Pesquisa realizada por BENAVOT e outros (1991, pp 317-344) sobre a organização curricular de sistemas de ensino administrados pelo Estado em países ligados à UNESCO - período 1920/1986 -, revela a existência de currículos padronizados, nos quais predominam: um mesmo núcleo de matérias e respectivo valor relativo; o mesmo tempo destinado às matérias nucleares; o mesmo tipo de alteração curricular num dado período (por exemplo, introdução de línguas estrangeiras, diminuição do tempo para geografia e história e aumento para estudos sociais); obrigatoriedade das mesmas matérias não nucleares (educação religiosa e ética, atividades práticas ou profissionais) - dentre outras "coincidências". Na verdade, segundo os autores, "o currículo de massas é definido e prescrito diretamente através da influência de determinadas organizações internacionais (por exemplo, o Banco Mundial e as Nações Unidas) mediante modelos apontados por Estados-nação dominantes e por profissionais da educação que operam em escala mundial" (p. 339).
Obviamente, não se trata de tendência ou "vocação" à imitação que teria impelido os países pobres a se espelharem nos modernos grandes ricos, mas sim, o efeito do imperialismo: os países econômica e politicamente dominantes subjugam os demais e impõem, na divisão internacional do trabalho, padrões de cultura e de sua transmissão em massa. E este quadro tende a agravar-se nos dias de hoje, sob a égide do neoliberalismo, com a propalada globalização da economia a exigir o fim das fronteiras nacionais, no contexto "unipolar" da "nova ordem" mundial. A educação é agora colocada no centro das atenções, destinando-se a formar cidadãos capacitados a produzir e consumir "modernamente", no contexto da terceira revolução científico-tecnológica.
Tanto ou mais que antes, os organismos internacionais como PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), UNESCO/UNICEF, capitaneados pelo Banco Mundial, não tardam a apresentar as pautas neoliberais para o ajuste das políticas educacionais dos países periféricos. Terá sido outro o objetivo da "Conferência Mundial de Educação para Todos", realizada em Jomtien, Tailândia, em março de 1990, da qual derivaram os PLANOS DECENAIS dos vários países - entre eles, o do Brasil?
Resta saber em que consistiria, nesse quadro, a "satisfação das necessidades básicas da aprendizagem" - o tema da Conferência. A quais necessidades se quer atender? Às da própria aprendizagem (isto é, ao que é preciso garantir para que ela ocorra)? Às de indivíduos e/ou grupos sociais com interesses de emancipação e participação? Ou às do mercado (um "abstrato" mercado mundial, globalizante e globalizado)?
O documento que serviu de apoio à Conferência define "uma estratégia mundial para a ação concertada durante o decênio de 1990", no sentido de garantir educação para todos, numa "visão ampliada de educação básica", ou seja, a educação que "satisfaz certas necessidades instrínsecas do ser humano, cria a capacidade de satisfazer outras necessidades humanas básicas, aumenta a produtividade e ajuda a desenvolver a capacidade de fazer frente a aspectos cruciais dos desafios mundiais ..." do século XXI..(WCEFA,1990, p.79). Desafios estes que se caracterizam pela ameaça de estagnação e decadência da economia, disparidades econômicas entre os países e dentro de cada país, marginalização de populações, degradação do meio ambiente e rápido aumento da população - que limitam o desenvolvimento humano e para cujo enfrentamento requer-se a ação combinada de todos os povos no sentido de "criar um clima internacional mais cooperativo". E a educação básica é chamada a vincular o desenvolvimento de recursos humanos "com o desenvolvimento e a conservação dos indivíduos para contribuir ao crescimento econômico e ao progresso social". (Idem, p. 1 e outros trechos).
Para a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), trata-se de relacionar adequadamente a educação com as mudanças tecnológicas, voltando-se para a produção de (e o acesso a) bens e serviços modernos, de modo a permitir que os países latino-americanos incrementem a competitividade, a eqüidade e a sustentabilidade ambiental. Suas recomendações, quanto à "transformação produtiva com eqüidade", tendo por eixo a relação Educação e Conhecimento, voltam-se para o atingimento dos seguintes objetivos: cidadania (responsabilidade social, transmissão de valores, formação democrática); competitividade (aquisição de habilidades e destrezas para o desempenho com desenvoltura no mundo moderno); eqüidade (igualdade de oportunidades, compensação das diferenças); desempenho (avaliação dos rendimentos, incentivo à inovação); integração (capacidade institucional dos países); descentralização (maior autonomia à ação educativa, maior responsabilidade dos agentes em relação aos resultados). (Cf. CEPAL/UNESCO, 1992, vários trechos). A questão do acesso e produção do conhecimento coloca-se como central para a educação, o que exige "um esforço sistemático para aprofundar as interrelações entre o sistema educacional, a capacitação, a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico". (Idem, p. 15).
Tudo isto, evidentemente, traz implicações para o currículo. Questões relativas a conhecimento, informação, domínio técnico-científico, passam a ocupar lugar de destaque, apontando para o privilegiamento de áreas como: linguagem - artes lingüísticas, discurso, expressão oral, leitura e escrita; matemática - solução de problemas, desenvolvimento da lógica; ciências - especialmente as "exatas" e as da natureza; informática - as novas tecnologias. A preocupação com a formação de recursos humanos flexíveis - força de trabalho com nível mais alto de conhecimento e capacidade de se formar e atualizar-se continuadamente - recobra a ênfase no aprender a aprender / aprender a estudar, como necessidade dos alunos. Ensino à distância, técnicas de estudo individualizado, aprimoramento dos procedimentos e técnicas de avaliação apresentam-se como imprescindíveis tanto para os estudantes quanto para os professores, dos quais se exige o aprender a ensinar.
Obececendo à orquestração do imperialismo, os países periféricos vão reformulando seus planos, adaptando-os às "recomendações" do Banco Mundial e de outros organismos internacionais. No caso do Brasil, o Plano Decenal de Educação para Todos reflete bem essa tendência. Mais ainda que o Plano, destaca-se o pronunciamento do Presidente Fernando Henrique Cardoso, em fevereiro de 1995, quando anunciou as cinco prioridades do Projeto "Acorda Brasil, é hora da escola": 1) dinheiro do ensino básico diretamente para as escolas; 2) valorização do professor, preparando-o para ensinar melhor, via Sistema Nacional de Educação à Distância / televisão educativa - um aparelho de TV em cada escola oficial; 3) melhoria da qualidade do material didático - livros de acordo com as necessidades dos alunos; 4) definição do conteúdo do ensino - matérias obrigatórias em todos os Estados; 5) avaliação das escolas - aplicação de testes em todos os alunos e premiação das escolas com melhores resultados. Especificamente sobre o currículo, FHC afirmou: "...o Ministro da Educação vai reunir os secretários da Educação de todos os Estados, para estabelecer, junto com eles, esse currículo básico". (FSP, 08/02/95, p. 1-8).
O que estará sendo estabelecido? Como serão concebidas as necessidades básicas de aprendizagem dos estudantes brasileiros, em nível nacional? Precisamos estar alertas, pois, muito provavelmente, as medidas virão acompanhadas de um discurso (aparentemente) democrático, incorporando até idéias e propostas já defendidas, em outros contextos, pelos movimentos docente, estudantil e popular - o que, aliás, tem sido uma das marcas do discurso neoliberal. E se, imposto ou proposto, "baixado" ou estabelecido mediante consultas, o currículo (bem como sua implementação) supõe, como dissemos, negociações - que, ao fim e ao cabo, se dão na sala de aula -, ao professor apresenta-se o desafio de buscar conhecer os fundamentos das diferentes propostas sobre as quais precisa tomar decisões.
Por exemplo, como se posicionar face a propostas como "pedagogia construtivista" ou "qualidade total em educação" - para citarmos as que mais recentemente vêm se apresentando às redes de ensino - se o professor não tem acesso senão a leituras de segunda ou terceira mão, isto é, a argumentos (de defesa ou crítica), elaborados segundo a leitura de adeptos ou desafetos? E face a propostas que assumem o ar de ecletismo, colocando lado a lado "pontos positivos, aproveitáveis" de diferentes concepções? Ou àquelas que retomam, com ares democráticos, aspectos já antes criticados (às vezes até pelos mesmos atuais proponentes) como elitistas, autoritários? Referimo-nos, neste caso, ao modo como, hoje, alguns dos que já foram adeptos da "pedagogia crítico-social dos conteúdos" apresentam, com outra roupagem, teses/propostas que se amoldariam muito bem ao tecnicismo da década de 70, tão duramente por eles criticado. Estarão fazendo alguma espécie de autocrítica, ou quererão fazer crer que perseguem os mesmos objetivos de democratização do saber elaborado, agora com meios "mais modernos"?...
Neste sentido, cabe reiterar o que propusemos em artigo para a Revista do SINPEEM (SAVIANI, N.,1995, p. 31), acerca da necessidade de os professores exigirem oportunidades de acesso aos fundamentos teóricos de seu próprio trabalho, para diminuição da desigualdade de condições nas negociações: desde conhecimentos relativos às matérias que lecionam (conforme as caracerísticas das ciências na atualidade), às raízes históricas e bases teóricas das concepções de educação escolar e problemas de elaboração e implementação de currículos e programas, em relação com questões didáticas, passando necessariamente pelo aprofundamento do estudo sobre concepção de conhecimento e seu tratamento no processo pedagógico. E entendemos que esta exigência pode (e deve) constar das pautas de reivindicações dos Sindicatos. O investimento na formação do professor não se limita à realização de cursos, por melhores que possam ser. Passa, também, pela melhoria das condições de trabalho, nas quais se incluem oportunidades de estudo individual, debates, e, principalmente, trabalho em equipe - o que não se consegue sem salário e jornada decentes, de modo a não ser necessária a desgastante maratona de uma escola a outra, que caracteriza o dia-a-dia da maioria dos professores.
Por fim, é preciso considerar que a luta pela melhoria da qualidade do ensino pressupõe a luta pela sobrevivência do ensino público e gratuito - hoje ameaçado pela onda privatista neoliberal. Conseqüentemente, a luta dos profissionais da educação há de ser, essencialmente, a da resistência à aplicação do projeto neoliberal em nosso país - pelo que ele significa de ataque à soberania nacional, às liberdades democráticas e aos direitos sociais dos trabalhadores.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENAVOT, Aaron e outros, "El conocimiento para las massas. Modelos mundiales y curricula nacionales" in Revista de Educación, 295, Historia del Curriculum - I , Madrid, 1991.
CARDOSO, Fernando Henrique, Pronunciamento in Folha de São Paulo, 08/02/95, p. 1.8.
CEPAL/UNESCO, Educacion y Conocimiento: eje de la tranformacion productiva con equidad, Santiago de Chile, Nações Unidas, 1992.
SAVIANI, Nereide, Saber Escolar, Currículo e Didática: problemas da unidade conteúdo/método no processo pedagógico, Campinas, Autores Associados, 1994.
SAVIANI, Nereide, "A conversão do conhecimento científico em Saber Escolar: uma luta inglória?" in Revista do SINPEEM, No. 2, São Paulo, fevereiro/1995.
VÁRIOS, Necesidades básicas de aprendizaje. Estrategias de acción, Santiago, Chile, UNESCO/IDRC, 1993.

ENTREVISTA à UBES
Nereide Saviani
UBES ? Que balanço a sra. faz dos oito anos do governo FHC no setor educacional?

N.S. O governo FHC seguiu, em Educação, a política neoliberal, que norteou suas ações em todos os setores, pautada na visão de estado mínimo e na lógica do mercado. Desobrigando-se das responsabilidades em relação aos direitos sociais, marcou-se pela transferência de responsabilidades: do poder público para a família, a comunidade ? apelo a serviços voluntários, parcerias, terceirização, privatização; e do poder central para os poderes locais. Nessa mesma linha, invocando a necessidade de ajustar a relação custo-benefício, centrou-se no corte de despesas, na redução do investimento. Seu Ministro, aliás, repetiu, nos oito anos à frente da pasta de Educação, o seguinte jargão: a quantidade está resolvida, o problema é a qualidade; os recursos são suficientes, o problema é que são mal gastos e mal distribuídos ... Tratada como mercadoria, à qual se tem acesso na medida do poder aquisitivo, a educação se voltaria para atender ao cliente, não necessariamente o aluno e seus familiares, mas o empresariado, interessado num tipo determinado de mão de obra, para um mercado cada vez mais excludente, que se responsabilizaria por premiar os bons, ou "mais aptos", e castigar os maus, ou "pouco talentosos".
Seguindo recomendações dos organismos internacionais, capitaneados pelo Banco Mundial, suas medidas incluíram reformas administrativas e pedagógicas, como a municipalização do ensino fundamental, a modificação da duração dos ciclos escolares, novas propostas curriculares, mecanismos de avaliação do rendimento escolar e docente. Manteve-se fiel aos cinco pontos anunciados já no início do primeiro mandato, quando, em cadeia de rádio e televisão, no dia sete de fevereiro de 1995, o Presidente inaugurou o Projeto Acorda, Brasil, está na hora da escola! Eis as cinco principais balizas do seu governo para a educação, então proclamadas: 1) dinheiro do ensino básico diretamente do Governo Federal para as escolas - para evitar desperdícios e sobrar para salários; 2) valorização do professor - prepará-lo para ensinar melhor, através da TV educativa, num sistema de ensino à distância (garantir um aparelho de TV em cada escola oficial); 3) investimento em material didático - melhoria da qualidade, regularização e pontualidade na entrega às escolas; 4) definição do conteúdo do ensino - matérias obrigatórias em todo o país, currículo básico nacional; 5) sistema unificado de avaliação - verificação dos pontos fracos, premiação das escolas com melhores resultados. (Cf. FSP, 08/02/95, p. 1.8).
Daí em diante, foram sendo tomadas medidas diversas ? não se hesitando em apelar para Emendas Constitucionais ? tais como o Fundef, o Enem, o Provão, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Foi no seu governo que se concluiu a elaboração da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), em meio a manobras e injunções que descaracterizaram a proposta que vinha sendo discutida no Congresso Nacional, com a participação do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública. E ainda os vetos ao Plano Nacional de Educação, cuja versão governamental se contrapôs à proposta da sociedade brasileira, aprovada no Coned (Congresso Nacional de Educação).

UBES ? Como foi a participação dos docentes no processo de elaboração da Constituição?
N.S. Foi bastante significativa a participação dos docentes na apresentação de propostas à Assembléia Nacional Constituinte, convocada a partir da eleição de 1986. Por meio de organizações sindicais, culturais e científicas, vinculando-se a entidades estudantis e de outros setores da sociedade civil, bem como a partidos e outras agremiações, realizaram-se grandes debates, em eventos estaduais e nacionais, em torno de itens relacionados à democratização da educação em nosso país.
Selada a Nova Carta, em 1988, iniciou-se imeditamente a discussão sobre sua regulamentação em matéria de educação, pela LDB, que já tinha merecido um artigo de Dermeval Saviani, elaborado sob a forma de anteprojeto, em 1987. Debatido em diversos eventos educacionais, o texto foi apresentado à Câmara Federal como projeto de lei, em 1988, por iniciativa do então Deputado Octávio Elísio. Deu-se prosseguimento ao processo de participação, já com a constituição do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública, integrado por fóruns estaduais da mesma natureza. Congressos de entidades passaram a ter como pauta obrigatória o debate das temáticas da LDB. Propostas as mais diversas passaram a ser encaminhadas aos parlamentares. Caravanas e mais caravanas se dirigiram a Brasília, com a finalidade de percorrer gabinetes e acompanhar sessões de discussão e votação da LDB, enquanto atos públicos eram organizados em todos os estados da federação.
UBES ? Que avanços teríamos se adotássemos a proposta de LDB da Câmara?

N.S. O projeto original apresentava importantes pontos, que foram se perdendo ao longo dos diferentes substitutivos. O principal deles, a meu ver, é a idéia de sistema nacional de educação, que subentende a perspectiva de construção de uma escola comum, unitária, no espírito da educação politécnica. Algumas propostas concretas associam-se e esses princípios: redução da jornada de trabalho (viabilização de freqüência à escola por jovens e adultos, com a possibilidade de estudar no horário de trabalho); salário-creche; delimitação do que pode e do que não pode ser considerado gasto com ensino; verbas públicas exclusivamente para o ensino público; Conselho Nacional de Educação associado ao Fórum Nacional de Educação; regulamentação da carreira do professor, prevendo-se jornada única e regime jurídico único; caráter de universidade ao Ensino Superior (inseparável da pesquisa). O Substitutivo Jorge Hage manteve a idéia de sistema, mas dificultada, ao prever a organização de sistemas municipais; abrindo brechas ao corporativismo na composição do Conselho Nacional de Educação, com a representação por entidade; relegando caráter consultivo ao Fórum Nacional de Educação; não prevendo formas nem prazos para exigência de organização do ensino superior em forma de universidade, permitindo a manutenção de faculdades isoladas; admitindo a permanência da categoria horista na carreira docente; permitindo a destinação de recursos a escolas particulares. Debatido na Câmara, o texto foi encaminhado ao Senado, já com algumas modificações, a principal delas no Título V ("Do Sistema Nacional de Educação"), que passou para "Da Organização da Educação Nacional". No Senado, foi posto em discussão um novo Substitutivo (Cid Sabóia), que manteve a estrutura do texto vindo da outra casa, incorporando aspectos aceitáveis de um outro projeto, que tinha sido apresentado pelo Senador Darcy Ribeiro. Foram realizadas novas audiências públicas, com a participação de entidades educacionais, além de consultas a representantes do governo e dos partidos. Embora já bastante distante da perspectiva do original, o texto resultante desse processo apresentava certa organicidade, em relação à legislação ainda vigente, disposta na esteira das reformas implantadas no período da ditadura militar e de suas alterações tópicas, realizadas durante a chamada transição democrática. E, também, em relação ao projeto que acabou se impondo, na forma do Substitutivo Darcy Ribeiro. Os principais avanços seriam obtidos, sem dúvida, com a aprovação do projeto original ? e as propostas concretas acima mencionadas falam por si.

UBES ? Como a sra. avalia a LDB aprovada?
N.S. Compartilho da posição de Dermeval Saviani, que identifica nela a predominância de uma concepção neoliberal. Em seu livro A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas (Editora Autores Associados, 1997), o autor analisa as leis anteriores e os projetos que tramitaram no Congresso Nacional até a aprovação da Lei 9394/96. Vale a pena percorrer sua argumentação ao caracterizar: a LDB 4024/61 como de concepção liberal; as reformas do ensino superior (Lei 5540/68) e de 1º e 2º Graus (Lei 5692/71) como de concepção tecnicista. E, para a LDB atual: o projeto original é associado a uma perspectiva socialista; o Substitutivo Jorge Hage, à concepção social-democrata, progressista; o Substitutivo Angela Amin (o texto que, afinal, deu origem ao Substitutivo Cid Sabóia), à concepção conservadora ? por ironia, menos pior que aquele que veio a ser aprovado.
Por que neoliberal? Pela sua visão "minimalista", na lógica do Estado mínimo, com transferência de responsabilidades: inverte o disposto na Constituição ? a educação como dever do Estado e da família (aparece como dever da família e do Estado); omite a idéia de ensino obrigatório e gratuito; concede liberdade de ensino à iniciativa privada, sem normas para coibir abusos. Pelo caráter regulador atribuído ao Estado, no âmbito da União, centralizando controle orçamentário e avaliação, e descentralizando a execução: responsabilidade aos municípios pelo Ensino Fundamental e, aos Estados, pelo Ensino Médio; não definição de responsáveis pelo Ensino Superior nem pela Educação Infantil ? o que pode deixá-los à mercê da iniciativa privada.
Na questão da valorização dos profissionais do ensino, omite o regime jurídico único. Desconsidera a proposta de Fórum Nacional de Educação e apresenta um Conselho Nacional de Educação desfigurado, sem definição de composição e nos termos da Medida Provisória, já em funcionamento. É totalmente vago em relação ao Ensino Médio ? nada define quanto à função profissionalizante, omite o ensino técnico. No ensino superior, prevalece o hiato ensino versus pesquisa, estende em demasia o prazo para a titulação de professores (1/3 em 8 anos), não prevê a paridade na gestão das instituições.
É preciso considerar, no entanto, que há também pontos positivos no texto aprovado. No que concerne ao conceito de educação, mantém uma concepção ampla, com os preceitos: igualdade de condições, pluralismo de idéias, respeito às diferenças, bem como a relação entre educação, trabalho e práticas sociais. Estabelece o ensino superior como regra para a formação de professores de todos os níveis (apesar de admitir o Instituto Superior de Educação, a Escola Normal Superior, o Curso Normal Superior, paralelamente às universidades). Quanto aos recursos financeiros, estipula a vinculação de percentuais a serem aplicados à educação, define o que pode e o que não pode ser considerado gasto com ensino e prazos para repasse dos valores. Inclui um Capítulo para as "minorias" (educação especial, educação indígena). E, nas disposições gerais, estabelece: admissão dos profissionais da educação por concurso público; a década da educação; diretrizes quanto à permanência na escola (aumento do número de dias letivos e, progressivamente, a instituição da escola em tempo integral).
Daí porque, sancionada a lei, colocou-se a necessidade de manter a luta, em dois sentidos: quanto aos pontos positivos, para regulamentá-los e exigir seu efetivo cumprimento; quanto aos negativos, para forjar a resistência ativa, visando-se à sua alteração e à busca de alternativas, por exemplo, com a elaboração do PNE ? Plano Nacional de Educação. Para tanto, impunha-se a união de forças, com ampliação das pautas, para além das questões educacionais (como a redução da jornada de trabalho), o que exigiria a articulação das organizações educacionais com as organizações operárias e com partidos e outras entidades da sociedade civil, compreendendo a atuação junto aos parlamentares.

UBES ? Que razões levou o prof. Darcy Ribeiro a apresentar o substitutivo?

N.S. Não ficou suficientemente claro isto, à época. E não me atrevo a especular sobre o assunto, até porque ele não mais pode confirmar/retrucar ou se defender de eventuais críticas. Devo ressalvar que sempre considerei Darcy Ribeiro um grande intelectual, que deu enormes contribuições ao estudo da sociedade brasileira e de nosso sistema educacional, inclusive com ações concretas de peso, quando à frente de órgãos públicos. Mesmo por ocasião dos debates da LDB, nunca me somei aos que o desmereciam face às posições que defendia. Não deixei de lamentar, como a maioria, o fato de ele ter se mantido alinhado a FHC. Até aí, um direito que lhe assistia. Mas, impossível aceitar o expediente, nada democrático, de fazer correr seu projeto por fora do processo instaurado para a discussão da LDB. Com ou sem esta intenção, o que ele fez foi esvaziar o texto da Câmara, cumprindo o papel de afastar as pressões das forças organizadas, deixando caminho livre para medidas tópicas (fundão, provão, CNE etc), que já vinham sendo matérias de Emendas Constitucionais e Medidas Provisórias.

UBES ? Que avaliação a sra. tem dos parâmetros curriculares introduzidos na gestão FHC?

N.S. Tratei dos PCN em dois artigos. Um deles, Parâmetros Curriculares Nacionais: o que dispõem para o Ensino Fundamental? ? corresponde à exposição na mesa redonda "Política de Ensino Fundamental ? Parâmetros Curriculares Nacionais". Tema Educação Básica, no I CONED - Belo Horizonte/MG, 02/08/96. Disponível em Disquete: Anais do I Coned, Programa "B". Publicado em Caderno Pedagógico Nº 02, Curitiba: APP/Sindicato, 1999, pp. 21-29. O outro, Bases legais e conceituais da reforma curricular do Ensino Médio no Estado de São Paulo, foi publicado na Revista de Educação da Apeoesp. Nº 11. São Paulo, agosto de 2000 - pp. 14-25. Vou salientar alguns pontos ali abordados.
As justificativas do MEC para a utilização da expressão parâmetros curriculares ao invés de currículo básico incluem as preocupações de: garantir a autonomia das diferentes instituições na definição de propostas próprias; não imprimir caráter obrigatório à programação apresentada; abrir-se a revisões periódicas e sistemáticas. Além disso, supõem a idéia de referencial para o estabelecimento de uma política de ensino para o país e a reestruturação de propostas educacionais gerais, preservando-se as especificidades locais. Na aparência, tudo muito democrático.
No entanto, a definição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), tanto nos objetivos declarados, quanto no processo de elaboração e no produto apresentado, reflete o autoritarismo da chamada visão "científico-racional". Quanto aos objetivos: ao definir as capacidades a serem formadas nos alunos, os PCN pretendem constituir-se "em uma referência para os investimentos do Estado" na educação, visando subsidiar e orientar: a elaboração ou revisão curricular; a formação inicial e continuada dos professores; a produção de livros e outros materiais didáticos; as discussões pedagógicas internas às escolas; a elaboração de projetos educativos; a avaliação do sistema nacional de educação. Como acreditar em não obrigatoriedade, com todas essas finalidades declaradas? Especialmente no que se refere à avaliação, sabe-se o quanto ela pode vir a dirigir e moldar, ao invés de simplesmente "orientar e subsidiar". Não nos esqueçamos das avaliações "externas", realizadas em todos os níveis...
No processo de elaboração, priorizou-se a ação de técnicos e especialistas ("competentes"), relegando-se ao professorado um papel burocrático, no fim da linha. Depois de tudo definido, ao nível do MEC e das Secretarias de Educação, é que as equipes pedagógicas das escolas entram em ação, para adequar o estabelecido à sua realidade. Na verdade, o que sobra aos professores/as é o planejamento e execução de projetos específicos. A "consulta" se deu a posteriori: acadêmicos e professores ? sem explicitação dos critérios de seleção ? foram acionados individualmente, não a partir de instituições ou entidades, e solicitados a apreciar os documentos, sendo submetidos ao constrangimento de decidir, pessoalmente, sobre emitir ou não o parecer e, em qualquer dos casos, tendo que buscar, por si próprios, os meios de tornar pública sua decisão e de divulgar suas opiniões acerca dos PCN, enviadas ou não ao MEC. Aos que optaram por enviar seu parecer, não se ofereceu qualquer possibilidade de controle sobre o uso que dele seria feito. Os seminários regionais, com participação de representantes de Secretarias de Educação e de instituições públicas e privadas, não apresentaram espaço à participação do professorado.
Sobre o produto apresentado, considero que há problemas relativos às orientações para o tratamento dos conteúdos selecionados, às tendências pedagógicas privilegiadas e à própria concepção de conhecimento a elas subjacente. Questionável é, também, a organização por ciclos e blocos de conteúdos, com a classificação das áreas curriculares e a indicação de processos avaliativos. Na indicação de experiências pedagógicas adequadas, os PCN revelam seu caráter de guia, não de referencial. Chegam a entrar em detalhes sobre o que, quando e como ensinar, às vezes com ares de receituário.

UBES ? O que levou à deterioração da Escola pública no Brasil?

N.S. Esse processo vem de longe. Quando o ensino público se reservava às elites e às camadas médias, os conteúdos e métodos procuravam acompanhar o que havia de mais avançado na pedagogia. Com o desenvolvimento industrial, iniciou-se timidamente a ampliação da instrução às massas trabalhadoras, com aumento considerável de vagas nas escolas públicas a partir do final dos anos 1950 e meados dos anos 1960. Essa expansão, porém, fez-se acompanhar da diferenciação do ensino, seja numa visão elitista, entendendo-se que o trabalhador braçal não precisa aprender as mesmas coisas que o intelectual, seja numa atitude paternalista, visando-se criar facilidades para um público que, de fato, encontrava maiores dificuldades para acompanhar um currículo moldado para quem tem outras experiências. No âmbito das políticas, a diferenciação se traduzia em menor destinação de recursos e, em conseqüência: não investimento na formação de professores aptos a trabalhar com essa nova realidade; escasso número de escolas, redundando em aumento dos turnos e seu corolário ? a redução do tempo de ensino. Tais características atingem dimensão mais exacerbada nos últimos anos, com a predominância da perspectiva neoliberal, de descaso em relação aos direitos sociais dos trabalhadores.
UBES ? Que avaliação a sra. faz do FUNDEF?

N.S. Parece-me democrática a idéia de fundo, pelo seu caráter distributivo. Mas o Fundef apresenta sérios problemas. De um lado, por restringir-se ao Ensino Fundamental (quando deveria englobar todo o Ensino Básico) e por deixar de lado a educação de adultos e a educação especial. De outro ? e esse é o principal problema ? , por se dar sob a ótica da redução de custos, com a falsa alegação de que são suficientes os recursos disponíveis. Além disso, na transferência de responsabilidades aos municípios, deixou-se às instâncias com menor poder exatamente o nível que apresenta mais problemas e que exigiria ações conjuntas, com envolvimento maior dos Estados e da União, não somente no repasse de recursos financeiros e seu controle. Os municípios mais pobres podem até ter tido alguma melhoria, mas ainda insignificante, diante das graves necessidades. E são eles os que enfrentam também a ausência de quadros e infra-estrutura para dar conta de aspectos relativos à qualidade de ensino.

UBES ? O que a sra. espera do próximo governo no setor educacional?

N.S. Tenho repetido que as necessárias mudanças na educação têm íntima relação com mudanças de base na sociedade: dependem delas, ao mesmo tempo em que podem impulsioná-las. O governo eleito assumiu o compromisso de incrementar a recuperação do desenvolvimento, com distribuição de renda. É de se esperar que dê conseqüência a um novo projeto, de caráter nacional, democrático e social, em contraposição ao projeto neoliberal (de submissão ao imperialismo, restrição das liberdades para o povo e desrespeito aos direitos sociais dos trabalhadores). Seu principal desafio consiste em inaugurar novo ciclo de crescimento em novas bases e, ao mesmo tempo, assumir a iniciativa de um conjunto de medidas distributivas, como o aumento do nível de emprego, a elevação progressiva do salário mínimo, a erradicação da fome, o enfrentamento da causa social da violência urbana.
A educação insere-se nesse contexto e exige medidas voltadas para a erradicação do analfabetismo ? passando por ações de emergência junto a adolescentes, jovens e adultos que não tiveram acesso à escola ou dela se evadiram precocemente ? mas implicando, necessariamente, o compromisso com a manutenção e desenvolvimento de um ensino de qualidade às atuais crianças, para que amanhã não venham a ser demanda de programas de alfabetização de jovens e adultos. E, ainda, para que tenham acesso garantido aos níveis superiores de ensino. Isto corresponde à necessidade de recuperar a idéia de sistema nacional de educação, com articulação dos graus, níveis, séries, modalidades de ensino e mecanismos democráticos de passagem de uns a outros, em regime de co-responsabilidade entre as instâncias gestionárias e as esferas de poder. Um sistema pautado nos seguintes princípios básicos: a educação como direito de todo cidadão; o dever do Estado na garantia da escola pública, gratuita, universal e laica; a igualdade de oportunidades e condições para o acesso à cultura, nas suas múltiplas manifestações, como fator de desenvolvimento das potencialidades do educando e de sua formação integral. Não é demais lembrar algumas diretrizes importantes: ampliação das oportunidades de acesso e permanência das massas populares na escola pública; garantia de boa qualidade do ensino ali ministrado; participação democrática da população organizada na gestão das instituições escolares e nos órgãos de decisão sobre o ensino; valorização dos profissionais da educação.
Aspecto de vital importância a ser enfrentado pelo próximo governo é a reversão das orientações neoliberais que predominaram nos últimos anos, das quais a mais premente é a substituição da lógica da redução de custos pela prática do aumento de investimento. Quer dizer, há que se sepultar a expressão gasto com educação em favor da idéia de destinação de recursos. Aqui, urgência urgentíssima deve ser dada ao aumento do percentual do PIB aplicado à educação ? matéria tratada no Plano Nacional de Educação da Sociedade Brasileira e que, mesmo tendo sofrido redução no PNE aprovado no Congresso Nacional, foi insistentemente vetada por FHC. Em matéria de financiamento é necessário, ainda, empreender mecanismos democráticos e eficazes de controle da aplicação das normas constitucionais quanto aos percentuais das receitas da União, dos Estados e do Município, efetivamente para manutenção e desenvolvimento do ensino. Além disso, repensar a criação, administração, controle e avaliação de fundos, contemplando todos os níveis e modalidades de ensino.
Obviamente, quando se fala em expectativas face ao novo governo, é imprescindível pensar-se na contraparte das organizações populares. Nossa participação não cessa com a eleição, muito ao contrário: exige que se garanta sustentação ao novo projeto, tanto sob a forma de apresentação de propostas e atuação concreta na sua viabilização, quanto na avaliação responsável de seus encaminhamentos. Nisto, as representações estudantis podem cumprir um importante papel e, creio, é esta a perspectiva da UBES.
São Vicente, 26/11/02
NEREIDE SAVIANI
Um resumo da biografia de Nereide Saviane
NEREIDE SAVIANI (1947) nasceu em Amparo-SP. Cursou o primário em escola de emergência da Zona Leste da Capital, o ginásio e o normal em escola particular confessional da mesma região.
Atuou como professora primária em escolas oficiais da periferia de São Paulo e na Escola de Aplicação da FEUSP; e como alfabetizadora e orientadora pedagógica de Educação de Adultos.
Integrou equipes de assessoria técnica, coordenação de programas e elaboração curricular de ensino regular e supletivo das Secretarias Municipal e Estadual de São Paulo.
No ensino superior, foi monitora do Ciclo Básico, quando aluna do 4º ano de Pedagogia da PUC/SP (1972); lecionou em cursos de Pedagogia (História da Educação) e de Literatura (Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º Graus).
Titulou-se Mestra em Supervisão e Currículo pela PUC/SP (1981) e Doutora em História e Filosofia da Educação (1993) pela mesma Universidade.
É autora de trabalhos e artigos sobre temáticas pedagógicas e sobre políticas educacionais, apresentados em eventos científicos nacionais e internacionais e publicados em periódicos nacionais.
Tem integrado equipes de estudos e pesquisas sobre pensamento educacional brasileiro, instituição escolar e pratica pedagógica, e orientado pesquisas de mestrado e doutorado envolvendo análises de teorias pedagógicas, reformas educacionais, programas e práticas de formação docente, propostas curriculares, aspectos da organização do trabalho pedagógico.
Tem ministrado cursos e proferido palestras em vários eventos promovidos por órgãos oficiais e não-governamentais ligados ao ensino básico, instituições de ensino superior, associações cientificas e sindicais, em municípios do estado de São Paulo e de outros estados da federação.
De 1994 a 2001 integrou o corpo docente do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade (antigo História e Filosofia da Educação), da PUC/SP. Atualmente é professora do mestrado stricto sensu em Educação da Universidade Católica da Santos (UniSantos).






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ELABORAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DO CURRÍCULO:
alguns enfoques e problemas atuais
Nereide Saviani
No conceito de currículo estão presentes, entre outras, as idéias de: conjunto de matérias/disciplinas escolares e respectivos programas; conjunto de atividades/experiências desenvolvidas na escola; conjunto de conhecimentos selecionados da cultura global da sociedade e organizados para fins de ensino/aprendizagem, constituindo-se num tipo peculiar de saber - o saber escolar.
Em geral, os elementos acima são abordados de forma segmentada, com o privilegiamento de um(ns) em detrimento de outros. Mas há esforços no sentido de concebê-los em unidade, na dialética do processo pedagógico - que envolve a relação currículo/didática como elementos do saber escolar. De qualquer modo, a visão de unidade não significa diluição das especificidades. Do ponto de vista do currículo, a especificidade estaria na questão dos conteúdos (que guardam relação com os diversos domínios da cultura). Do ponto de vista da didática, na definição dos métodos e processos de ensino.
O tratamento dicotomizado dos diversos elementos que compõem o saber escolar tem dificultado a análise dos problemas educacionais, a reflexão sobre suas causas e o vislumbre de indicadores para sua superação. Da visão fragmentária, que separa meios e fins, conteúdo e método, sujeito e objeto, teoria e prática, quantidade e qualidade - e tantos ouros componentes do processo pedagógico - decorrem interpretações superficiais, não raro falseadas, das questões educacionais, remetendo para "soluções" parcializadas, ou, quando muito, ecléticas, em propostas pedagógicas que justapõem, aleatoriamente, idéias/propostas oriundas de diversas matrizes teóricas, às vezes antagônicas.
Essa visão fragmentária é também a que separa o saber escolar de outros saberes que compõem a cultura global da sociedade. Da mera constatação, à crítica do que se detecta, passando-se pela defesa desta ou daquela situação e pela indicação do que o saber escolar deve/deveria ser, tal separação expressa-se sob diversas formas, tais como: a idéia de que a escola propõe-se a trabalhar saberes elaborados fora dela, transpondo-os tais e quais para as situações de ensino/aprendizagem; a de que a escola elabora um saber todo peculiar, cuja maior ou menor ligação com outros saberes depende dos objetivos, necessidades, interesses a ela intrínsecos e/ou extrínsecos; a de que a escola produz seu próprio saber, de forma autônoma, segundo o desenrolar das relações que se estabelecem no seu interior; a de que o processo pedagógico restringe-se a uma transposição didática dos saberes da sociedade em saber escolar.
A literatura acerca do tema do currículo envolve estudos com os mais diferentes enfoques, por exemplo: os que operam a crítica de como a escola organiza o currículo, indicando ou não como, na perspectiva defendida, deveria fazê-lo; os que buscam desvendar os processos e vicissitudes da elaboração e aplicação do currículo, através da análise de sua
história; os que se dedicam à organização de inventário-síntese de diversas abordagens e perspectivas
Nessa literatura é possível, também, constatar modos diferenciados de encarar o problema da constituição e difusão do saber escolar e de sua organização em currículos e programas. Há estudos que privilegiam os aspectos sociológicos, centram-se na relação escola/sociedade e analisam o currículo como reflexo dos (ou voltados para os) interesses e necessidades do indivíduo e/ou da sociedade. Outros, enfatizam os aspectos psicológicos, os relativos à aprendizagem, e analisam o currículo segundo o atendimento às características, necessidades e interesses do aluno, voltando-se para o exame da estrutura do sujeito cognoscente. Há, ainda, os que priorizam aspectos lógicos, os relativos ao conteúdo, e analisam o currículo segundo o atendimento às características do objeto cognoscível (a estrutura das matérias de ensino - áreas do conhecimento/disciplinas escolares). Num quarto tipo, encontram-se estudos que procuram contemplar os três anteriores, englobando aspectos sociológicos, psicológicos e lógicos da elaboração e aplicação do currículo - seja numa visão eclética, seja numa tentativa de síntese dialética.
A análise da problemática curricular vem contando com a contribuição de um campo recente de estudos e pesquisas: o da história do currículo e das disciplinas escolares - que se dedica não somente ao exame da evolução do "pensamento curricular" ou da história das idéias sobre o currículo e as matérias escolares, mas também ao estudo dos processos pelos quais vêm se dando a elaboração do currículo, os esforços de sua consolidação e os intentos de elaboração de reformas curriculares, bem como dos processos de constituição, "assentamento", mudança e até desaparecimento/ressurgimento das disciplinas escolares.
A literatura que analisa a história do currículo situa fatores que contribuem para conformar o perfil e definir o caráter do ensino e do currículo que a ele corresponda. Dependendo do tipo de ensino enfatizado (propedêutico ou de caráter "final"), da formação que se quer privilegiar (humanística, científica ou técnica), das necessidades a serem atendidas (do indivíduo e sua família, do Estado ou demandas do mercado) - diferenciam-se o caráter e a modalidade do currículo, distinguindo-se, também: as matérias, seu valor relativo e respectivos programas; a destinação de recursos financeiros e materiais às atividades especificamente curriculares; as formas e critérios de avaliação; as normas disciplinares; os modos de acompanhamento e controle das unidades escolares; o lugar e o papel dos saberes elementares (a leitura, a escrita, o cálculo), bem como o caráter e a freqüência das campanhas de alfabetização.
As obras que tratam da história das matérias escolares apontam fatores que determinam a evolução de uma disciplina ou área de estudo, sua inclusão/exclusão e valor relativo em currículos determinados. São fatores ligados tanto às finalidades educacionais da sociedade (exigências do regime sócio-político, da religião, da família, do mercado) quanto às específicas da escola, incluindo: demandas por tipos diferentes de ensino; características e transformações sociais e culturais dos públicos escolares; renovação/estabilidade do corpo docente; sistemática de avaliação e seleção (provas, exames, vestibulares, concursos); condições materiais (construções escolares, mobiliário, equipamentos) e recursos, com destaque para o livro didático. Entram em jogo, também, interesses de grupos diversos da sociedade: ação e prestígio de lideranças intelectuais; exigências e pleitos de professores e especialistas da educação; influência de centros acadêmicos de produção teórica/técnica e de centros de formação de profissionais das várias áreas; interferências de entidades culturais e associações de profissionais; além da política editorial de cada área.
Os estudos que abordam as questões curriculares na perspectiva histórica têm possibilitado: a avaliação dos impactos das propostas curriculares na prática escolar; o exame do discurso pedagógico, das regulamentações, das transformações no próprio campo, em relação com as mudanças no cenário educacional e no contexto social mais amplo; a captação de contradições, conflitos, relações de poder e prestígio envolvidos na tomada de decisões curriculares e no processo de constituição das disciplinas, sua instauração num currículo dado e o lugar de cada uma na hierarquia das matérias que o compõem; a desmistificação de idéias apresentadas (muitas vezes prescritas, pontificadas) em boa parte das produções teóricas e/ou políticas que discutem problemas educacionais.
Tais estudos revelam, também, que a elaboração e a implementação do curriculo (envolvendo a disposição das matérias e respectivos programas, bem como a seleção de métodos, técnicas, procedimentos, recursos necessários a seu desenvolvimento) resultam de processos conflituosos e de decisões negociadas. Com essa revelação, desmistifica-se a visão do currículo como mero resultado de decisões científico-racionais, baseadas no consenso (a idéia da possibilidade de elaboração de currículos ideais, perfeitamente amoldados numa dada teoria e aplicáveis tal qual concebidos), contribuindo para colocar-se sob suspeita o presumível caráter "democrático" das "consultas" feitas ao professorado acerca de propostas curriculares elaboradas por técnicos "especializados". Ao mesmo tempo, apontam os limites das concepções que se restringem à idéia do conflito (na visão da irremediável determinação do processo pedagógico por interesses dominantes e do limitado papel do professor como denunciador dos mecanismos de exploração), contribuindo para admitir-se a perspectiva de ocupação de espaços democráticos e forçar-se a negociação no sentido de atender aos interesses populares.
Outra descoberta dos estudos históricos é a de que há uma tendência, na elaboração do currículo e valorização de seus elementos - bem como na disposição/hierarquização das disciplinas escolares - a se obedecerem normas, critérios, modelos estabelecidos mundialmente. Pesquisa realizada por BENAVOT e outros (1991, pp 317-344) sobre a organização curricular de sistemas de ensino administrados pelo Estado em países ligados à UNESCO - período 1920/1986 -, revela a existência de currículos padronizados, nos quais predominam: um mesmo núcleo de matérias e respectivo valor relativo; o mesmo tempo destinado às matérias nucleares; o mesmo tipo de alteração curricular num dado período (por exemplo, introdução de línguas estrangeiras, diminuição do tempo para geografia e história e aumento para estudos sociais); obrigatoriedade das mesmas matérias não nucleares (educação religiosa e ética, atividades práticas ou profissionais) - dentre outras "coincidências". Na verdade, segundo os autores, "o currículo de massas é definido e prescrito diretamente através da influência de determinadas organizações internacionais (por exemplo, o Banco Mundial e as Nações Unidas) mediante modelos apontados por Estados-nação dominantes e por profissionais da educação que operam em escala mundial" (p. 339).
Obviamente, não se trata de tendência ou "vocação" à imitação que teria impelido os países pobres a se espelharem nos modernos grandes ricos, mas sim, o efeito do imperialismo: os países econômica e politicamente dominantes subjugam os demais e impõem, na divisão internacional do trabalho, padrões de cultura e de sua transmissão em massa. E este quadro tende a agravar-se nos dias de hoje, sob a égide do neoliberalismo, com a propalada globalização da economia a exigir o fim das fronteiras nacionais, no contexto "unipolar" da "nova ordem" mundial. A educação é agora colocada no centro das atenções, destinando-se a formar cidadãos capacitados a produzir e consumir "modernamente", no contexto da terceira revolução científico-tecnológica.
Tanto ou mais que antes, os organismos internacionais como PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), UNESCO/UNICEF, capitaneados pelo Banco Mundial, não tardam a apresentar as pautas neoliberais para o ajuste das políticas educacionais dos países periféricos. Terá sido outro o objetivo da "Conferência Mundial de Educação para Todos", realizada em Jomtien, Tailândia, em março de 1990, da qual derivaram os PLANOS DECENAIS dos vários países - entre eles, o do Brasil?
Resta saber em que consistiria, nesse quadro, a "satisfação das necessidades básicas da aprendizagem" - o tema da Conferência. A quais necessidades se quer atender? Às da própria aprendizagem (isto é, ao que é preciso garantir para que ela ocorra)? Às de indivíduos e/ou grupos sociais com interesses de emancipação e participação? Ou às do mercado (um "abstrato" mercado mundial, globalizante e globalizado)?
O documento que serviu de apoio à Conferência define "uma estratégia mundial para a ação concertada durante o decênio de 1990", no sentido de garantir educação para todos, numa "visão ampliada de educação básica", ou seja, a educação que "satisfaz certas necessidades instrínsecas do ser humano, cria a capacidade de satisfazer outras necessidades humanas básicas, aumenta a produtividade e ajuda a desenvolver a capacidade de fazer frente a aspectos cruciais dos desafios mundiais ..." do século XXI..(WCEFA,1990, p.79). Desafios estes que se caracterizam pela ameaça de estagnação e decadência da economia, disparidades econômicas entre os países e dentro de cada país, marginalização de populações, degradação do meio ambiente e rápido aumento da população - que limitam o desenvolvimento humano e para cujo enfrentamento requer-se a ação combinada de todos os povos no sentido de "criar um clima internacional mais cooperativo". E a educação básica é chamada a vincular o desenvolvimento de recursos humanos "com o desenvolvimento e a conservação dos indivíduos para contribuir ao crescimento econômico e ao progresso social". (Idem, p. 1 e outros trechos).
Para a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), trata-se de relacionar adequadamente a educação com as mudanças tecnológicas, voltando-se para a produção de (e o acesso a) bens e serviços modernos, de modo a permitir que os países latino-americanos incrementem a competitividade, a eqüidade e a sustentabilidade ambiental. Suas recomendações, quanto à "transformação produtiva com eqüidade", tendo por eixo a relação Educação e Conhecimento, voltam-se para o atingimento dos seguintes objetivos: cidadania (responsabilidade social, transmissão de valores, formação democrática); competitividade (aquisição de habilidades e destrezas para o desempenho com desenvoltura no mundo moderno); eqüidade (igualdade de oportunidades, compensação das diferenças); desempenho (avaliação dos rendimentos, incentivo à inovação); integração (capacidade institucional dos países); descentralização (maior autonomia à ação educativa, maior responsabilidade dos agentes em relação aos resultados). (Cf. CEPAL/UNESCO, 1992, vários trechos). A questão do acesso e produção do conhecimento coloca-se como central para a educação, o que exige "um esforço sistemático para aprofundar as interrelações entre o sistema educacional, a capacitação, a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico". (Idem, p. 15).
Tudo isto, evidentemente, traz implicações para o currículo. Questões relativas a conhecimento, informação, domínio técnico-científico, passam a ocupar lugar de destaque, apontando para o privilegiamento de áreas como: linguagem - artes lingüísticas, discurso, expressão oral, leitura e escrita; matemática - solução de problemas, desenvolvimento da lógica; ciências - especialmente as "exatas" e as da natureza; informática - as novas tecnologias. A preocupação com a formação de recursos humanos flexíveis - força de trabalho com nível mais alto de conhecimento e capacidade de se formar e atualizar-se continuadamente - recobra a ênfase no aprender a aprender / aprender a estudar, como necessidade dos alunos. Ensino à distância, técnicas de estudo individualizado, aprimoramento dos procedimentos e técnicas de avaliação apresentam-se como imprescindíveis tanto para os estudantes quanto para os professores, dos quais se exige o aprender a ensinar.
Obececendo à orquestração do imperialismo, os países periféricos vão reformulando seus planos, adaptando-os às "recomendações" do Banco Mundial e de outros organismos internacionais. No caso do Brasil, o Plano Decenal de Educação para Todos reflete bem essa tendência. Mais ainda que o Plano, destaca-se o pronunciamento do Presidente Fernando Henrique Cardoso, em fevereiro de 1995, quando anunciou as cinco prioridades do Projeto "Acorda Brasil, é hora da escola": 1) dinheiro do ensino básico diretamente para as escolas; 2) valorização do professor, preparando-o para ensinar melhor, via Sistema Nacional de Educação à Distância / televisão educativa - um aparelho de TV em cada escola oficial; 3) melhoria da qualidade do material didático - livros de acordo com as necessidades dos alunos; 4) definição do conteúdo do ensino - matérias obrigatórias em todos os Estados; 5) avaliação das escolas - aplicação de testes em todos os alunos e premiação das escolas com melhores resultados. Especificamente sobre o currículo, FHC afirmou: "...o Ministro da Educação vai reunir os secretários da Educação de todos os Estados, para estabelecer, junto com eles, esse currículo básico". (FSP, 08/02/95, p. 1-8).
O que estará sendo estabelecido? Como serão concebidas as necessidades básicas de aprendizagem dos estudantes brasileiros, em nível nacional? Precisamos estar alertas, pois, muito provavelmente, as medidas virão acompanhadas de um discurso (aparentemente) democrático, incorporando até idéias e propostas já defendidas, em outros contextos, pelos movimentos docente, estudantil e popular - o que, aliás, tem sido uma das marcas do discurso neoliberal. E se, imposto ou proposto, "baixado" ou estabelecido mediante consultas, o currículo (bem como sua implementação) supõe, como dissemos, negociações - que, ao fim e ao cabo, se dão na sala de aula -, ao professor apresenta-se o desafio de buscar conhecer os fundamentos das diferentes propostas sobre as quais precisa tomar decisões.
Por exemplo, como se posicionar face a propostas como "pedagogia construtivista" ou "qualidade total em educação" - para citarmos as que mais recentemente vêm se apresentando às redes de ensino - se o professor não tem acesso senão a leituras de segunda ou terceira mão, isto é, a argumentos (de defesa ou crítica), elaborados segundo a leitura de adeptos ou desafetos? E face a propostas que assumem o ar de ecletismo, colocando lado a lado "pontos positivos, aproveitáveis" de diferentes concepções? Ou àquelas que retomam, com ares democráticos, aspectos já antes criticados (às vezes até pelos mesmos atuais proponentes) como elitistas, autoritários? Referimo-nos, neste caso, ao modo como, hoje, alguns dos que já foram adeptos da "pedagogia crítico-social dos conteúdos" apresentam, com outra roupagem, teses/propostas que se amoldariam muito bem ao tecnicismo da década de 70, tão duramente por eles criticado. Estarão fazendo alguma espécie de autocrítica, ou quererão fazer crer que perseguem os mesmos objetivos de democratização do saber elaborado, agora com meios "mais modernos"?...
Neste sentido, cabe reiterar o que propusemos em artigo para a Revista do SINPEEM (SAVIANI, N.,1995, p. 31), acerca da necessidade de os professores exigirem oportunidades de acesso aos fundamentos teóricos de seu próprio trabalho, para diminuição da desigualdade de condições nas negociações: desde conhecimentos relativos às matérias que lecionam (conforme as caracerísticas das ciências na atualidade), às raízes históricas e bases teóricas das concepções de educação escolar e problemas de elaboração e implementação de currículos e programas, em relação com questões didáticas, passando necessariamente pelo aprofundamento do estudo sobre concepção de conhecimento e seu tratamento no processo pedagógico. E entendemos que esta exigência pode (e deve) constar das pautas de reivindicações dos Sindicatos. O investimento na formação do professor não se limita à realização de cursos, por melhores que possam ser. Passa, também, pela melhoria das condições de trabalho, nas quais se incluem oportunidades de estudo individual, debates, e, principalmente, trabalho em equipe - o que não se consegue sem salário e jornada decentes, de modo a não ser necessária a desgastante maratona de uma escola a outra, que caracteriza o dia-a-dia da maioria dos professores.
Por fim, é preciso considerar que a luta pela melhoria da qualidade do ensino pressupõe a luta pela sobrevivência do ensino público e gratuito - hoje ameaçado pela onda privatista neoliberal. Conseqüentemente, a luta dos profissionais da educação há de ser, essencialmente, a da resistência à aplicação do projeto neoliberal em nosso país - pelo que ele significa de ataque à soberania nacional, às liberdades democráticas e aos direitos sociais dos trabalhadores.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENAVOT, Aaron e outros, "El conocimiento para las massas. Modelos mundiales y curricula nacionales" in Revista de Educación, 295, Historia del Curriculum - I , Madrid, 1991.
CARDOSO, Fernando Henrique, Pronunciamento in Folha de São Paulo, 08/02/95, p. 1.8.
CEPAL/UNESCO, Educacion y Conocimiento: eje de la tranformacion productiva con equidad, Santiago de Chile, Nações Unidas, 1992.
SAVIANI, Nereide, Saber Escolar, Currículo e Didática: problemas da unidade conteúdo/método no processo pedagógico, Campinas, Autores Associados, 1994.
SAVIANI, Nereide, "A conversão do conhecimento científico em Saber Escolar: uma luta inglória?" in Revista do SINPEEM, No. 2, São Paulo, fevereiro/1995.
VÁRIOS, Necesidades básicas de aprendizaje. Estrategias de acción, Santiago, Chile, UNESCO/IDRC, 1993.

ENTREVISTA à UBES
Nereide Saviani
UBES - Que balanço a sra. faz dos oito anos do governo FHC no setor educacional?
N.S. O governo FHC seguiu, em Educação, a política neoliberal, que norteou suas ações em todos os setores, pautada na visão de estado mínimo e na lógica do mercado. Desobrigando-se das responsabilidades em relação aos direitos sociais, marcou-se pela transferência de responsabilidades: do poder público para a família, a comunidade - apelo a serviços voluntários, parcerias, terceirização, privatização; e do poder central para os poderes locais. Nessa mesma linha, invocando a necessidade de ajustar a relação custo-benefício, centrou-se no corte de despesas, na redução do investimento. Seu Ministro, aliás, repetiu, nos oito anos à frente da pasta de Educação, o seguinte jargão: a quantidade está resolvida, o problema é a qualidade; os recursos são suficientes, o problema é que são mal gastos e mal distribuídos ... Tratada como mercadoria, à qual se tem acesso na medida do poder aquisitivo, a educação se voltaria para atender ao cliente, não necessariamente o aluno e seus familiares, mas o empresariado, interessado num tipo determinado de mão de obra, para um mercado cada vez mais excludente, que se responsabilizaria por premiar os bons, ou "mais aptos", e castigar os maus, ou "pouco talentosos".
Seguindo recomendações dos organismos internacionais, capitaneados pelo Banco Mundial, suas medidas incluíram reformas administrativas e pedagógicas, como a municipalização do ensino fundamental, a modificação da duração dos ciclos escolares, novas propostas curriculares, mecanismos de avaliação do rendimento escolar e docente. Manteve-se fiel aos cinco pontos anunciados já no início do primeiro mandato, quando, em cadeia de rádio e televisão, no dia sete de fevereiro de 1995, o Presidente inaugurou o Projeto Acorda, Brasil, está na hora da escola! Eis as cinco principais balizas do seu governo para a educação, então proclamadas: 1) dinheiro do ensino básico diretamente do Governo Federal para as escolas - para evitar desperdícios e sobrar para salários; 2) valorização do professor - prepará-lo para ensinar melhor, através da TV educativa, num sistema de ensino à distância (garantir um aparelho de TV em cada escola oficial); 3) investimento em material didático - melhoria da qualidade, regularização e pontualidade na entrega às escolas; 4) definição do conteúdo do ensino - matérias obrigatórias em todo o país, currículo básico nacional; 5) sistema unificado de avaliação - verificação dos pontos fracos, premiação das escolas com melhores resultados. (Cf. FSP, 08/02/95, p. 1.8).
Daí em diante, foram sendo tomadas medidas diversas - não se hesitando em apelar para Emendas Constitucionais - tais como o Fundef, o Enem, o Provão, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Foi no seu governo que se concluiu a elaboração da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), em meio a manobras e injunções que descaracterizaram a proposta que vinha sendo discutida no Congresso Nacional, com a participação do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública. E ainda os vetos ao Plano Nacional de Educação, cuja versão governamental se contrapôs à proposta da sociedade brasileira, aprovada no Coned (Congresso Nacional de Educação).
UBES - Como foi a participação dos docentes no processo de elaboração da Constituição?
N.S. Foi bastante significativa a participação dos docentes na apresentação de propostas à Assembléia Nacional Constituinte, convocada a partir da eleição de 1986. Por meio de organizações sindicais, culturais e científicas, vinculando-se a entidades estudantis e de outros setores da sociedade civil, bem como a partidos e outras agremiações, realizaram-se grandes debates, em eventos estaduais e nacionais, em torno de itens relacionados à democratização da educação em nosso país.
Selada a Nova Carta, em 1988, iniciou-se imeditamente a discussão sobre sua regulamentação em matéria de educação, pela LDB, que já tinha merecido um artigo de Dermeval Saviani, elaborado sob a forma de anteprojeto, em 1987. Debatido em diversos eventos educacionais, o texto foi apresentado à Câmara Federal como projeto de lei, em 1988, por iniciativa do então Deputado Octávio Elísio. Deu-se prosseguimento ao processo de participação, já com a constituição do Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública, integrado por fóruns estaduais da mesma natureza. Congressos de entidades passaram a ter como pauta obrigatória o debate das temáticas da LDB. Propostas as mais diversas passaram a ser encaminhadas aos parlamentares. Caravanas e mais caravanas se dirigiram a Brasília, com a finalidade de percorrer gabinetes e acompanhar sessões de discussão e votação da LDB, enquanto atos públicos eram organizados em todos os estados da federação.
UBES - Que avanços teríamos se adotássemos a proposta de LDB da Câmara?
N.S. O projeto original apresentava importantes pontos, que foram se perdendo ao longo dos diferentes substitutivos. O principal deles, a meu ver, é a idéia de sistema nacional de educação, que subentende a perspectiva de construção de uma escola comum, unitária, no espírito da educação politécnica. Algumas propostas concretas associam-se e esses princípios: redução da jornada de trabalho (viabilização de freqüência à escola por jovens e adultos, com a possibilidade de estudar no horário de trabalho); salário-creche; delimitação do que pode e do que não pode ser considerado gasto com ensino; verbas públicas exclusivamente para o ensino público; Conselho Nacional de Educação associado ao Fórum Nacional de Educação; regulamentação da carreira do professor, prevendo-se jornada única e regime jurídico único; caráter de universidade ao Ensino Superior (inseparável da pesquisa). O Substitutivo Jorge Hage manteve a idéia de sistema, mas dificultada, ao prever a organização de sistemas municipais; abrindo brechas ao corporativismo na composição do Conselho Nacional de Educação, com a representação por entidade; relegando caráter consultivo ao Fórum Nacional de Educação; não prevendo formas nem prazos para exigência de organização do ensino superior em forma de universidade, permitindo a manutenção de faculdades isoladas; admitindo a permanência da categoria horista na carreira docente; permitindo a destinação de recursos a escolas particulares. Debatido na Câmara, o texto foi encaminhado ao Senado, já com algumas modificações, a principal delas no Título V ("Do Sistema Nacional de Educação"), que passou para "Da Organização da Educação Nacional". No Senado, foi posto em discussão um novo Substitutivo (Cid Sabóia), que manteve a estrutura do texto vindo da outra casa, incorporando aspectos aceitáveis de um outro projeto, que tinha sido apresentado pelo Senador Darcy Ribeiro. Foram realizadas novas audiências públicas, com a participação de entidades educacionais, além de consultas a representantes do governo e dos partidos. Embora já bastante distante da perspectiva do original, o texto resultante desse processo apresentava certa organicidade, em relação à legislação ainda vigente, disposta na esteira das reformas implantadas no período da ditadura militar e de suas alterações tópicas, realizadas durante a chamada transição democrática. E, também, em relação ao projeto que acabou se impondo, na forma do Substitutivo Darcy Ribeiro. Os principais avanços seriam obtidos, sem dúvida, com a aprovação do projeto original - e as propostas concretas acima mencionadas falam por si.
UBES - Como a sra. avalia a LDB aprovada?
N.S. Compartilho da posição de Dermeval Saviani, que identifica nela a predominância de uma concepção neoliberal. Em seu livro A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas (Editora Autores Associados, 1997), o autor analisa as leis anteriores e os projetos que tramitaram no Congresso Nacional até a aprovação da Lei 9394/96. Vale a pena percorrer sua argumentação ao caracterizar: a LDB 4024/61 como de concepção liberal; as reformas do ensino superior (Lei 5540/68) e de 1º e 2º Graus (Lei 5692/71) como de concepção tecnicista. E, para a LDB atual: o projeto original é associado a uma perspectiva socialista; o Substitutivo Jorge Hage, à concepção social-democrata, progressista; o Substitutivo Angela Amin (o texto que, afinal, deu origem ao Substitutivo Cid Sabóia), à concepção conservadora - por ironia, menos pior que aquele que veio a ser aprovado.
Por que neoliberal? Pela sua visão "minimalista", na lógica do Estado mínimo, com transferência de responsabilidades: inverte o disposto na Constituição - a educação como dever do Estado e da família (aparece como dever da família e do Estado); omite a idéia de ensino obrigatório e gratuito; concede liberdade de ensino à iniciativa privada, sem normas para coibir abusos. Pelo caráter regulador atribuído ao Estado, no âmbito da União, centralizando controle orçamentário e avaliação, e descentralizando a execução: responsabilidade aos municípios pelo Ensino Fundamental e, aos Estados, pelo Ensino Médio; não definição de responsáveis pelo Ensino Superior nem pela Educação Infantil - o que pode deixá-los à mercê da iniciativa privada.
Na questão da valorização dos profissionais do ensino, omite o regime jurídico único. Desconsidera a proposta de Fórum Nacional de Educação e apresenta um Conselho Nacional de Educação desfigurado, sem definição de composição e nos termos da Medida Provisória, já em funcionamento. É totalmente vago em relação ao Ensino Médio - nada define quanto à função profissionalizante, omite o ensino técnico. No ensino superior, prevalece o hiato ensino versus pesquisa, estende em demasia o prazo para a titulação de professores (1/3 em 8 anos), não prevê a paridade na gestão das instituições.
É preciso considerar, no entanto, que há também pontos positivos no texto aprovado. No que concerne ao conceito de educação, mantém uma concepção ampla, com os preceitos: igualdade de condições, pluralismo de idéias, respeito às diferenças, bem como a relação entre educação, trabalho e práticas sociais. Estabelece o ensino superior como regra para a formação de professores de todos os níveis (apesar de admitir o Instituto Superior de Educação, a Escola Normal Superior, o Curso Normal Superior, paralelamente às universidades). Quanto aos recursos financeiros, estipula a vinculação de percentuais a serem aplicados à educação, define o que pode e o que não pode ser considerado gasto com ensino e prazos para repasse dos valores. Inclui um Capítulo para as "minorias" (educação especial, educação indígena). E, nas disposições gerais, estabelece: admissão dos profissionais da educação por concurso público; a década da educação; diretrizes quanto à permanência na escola (aumento do número de dias letivos e, progressivamente, a instituição da escola em tempo integral).
Daí porque, sancionada a lei, colocou-se a necessidade de manter a luta, em dois sentidos: quanto aos pontos positivos, para regulamentá-los e exigir seu efetivo cumprimento; quanto aos negativos, para forjar a resistência ativa, visando-se à sua alteração e à busca de alternativas, por exemplo, com a elaboração do PNE - Plano Nacional de Educação. Para tanto, impunha-se a união de forças, com ampliação das pautas, para além das questões educacionais (como a redução da jornada de trabalho), o que exigiria a articulação das organizações educacionais com as organizações operárias e com partidos e outras entidades da sociedade civil, compreendendo a atuação junto aos parlamentares.

UBES - Que razões levou o prof. Darcy Ribeiro a apresentar o substitutivo?
N.S. Não ficou suficientemente claro isto, à época. E não me atrevo a especular sobre o assunto, até porque ele não mais pode confirmar/retrucar ou se defender de eventuais críticas. Devo ressalvar que sempre considerei Darcy Ribeiro um grande intelectual, que deu enormes contribuições ao estudo da sociedade brasileira e de nosso sistema educacional, inclusive com ações concretas de peso, quando à frente de órgãos públicos. Mesmo por ocasião dos debates da LDB, nunca me somei aos que o desmereciam face às posições que defendia. Não deixei de lamentar, como a maioria, o fato de ele ter se mantido alinhado a FHC. Até aí, um direito que lhe assistia. Mas, impossível aceitar o expediente, nada democrático, de fazer correr seu projeto por fora do processo instaurado para a discussão da LDB. Com ou sem esta intenção, o que ele fez foi esvaziar o texto da Câmara, cumprindo o papel de afastar as pressões das forças organizadas, deixando caminho livre para medidas tópicas (fundão, provão, CNE etc), que já vinham sendo matérias de Emendas Constitucionais e Medidas Provisórias.
UBES - Que avaliação a sra. tem dos parâmetros curriculares introduzidos na gestão FHC?
N.S. Tratei dos PCN em dois artigos. Um deles, Parâmetros Curriculares Nacionais: o que dispõem para o Ensino Fundamental? - corresponde à exposição na mesa redonda "Política de Ensino Fundamental - Parâmetros Curriculares Nacionais". Tema Educação Básica, no I CONED - Belo Horizonte/MG, 02/08/96. Disponível em Disquete: Anais do I Coned, Programa "B". Publicado em Caderno Pedagógico Nº 02, Curitiba: APP/Sindicato, 1999, pp. 21-29. O outro, Bases legais e conceituais da reforma curricular do Ensino Médio no Estado de São Paulo, foi publicado na Revista de Educação da Apeoesp. Nº 11. São Paulo, agosto de 2000 - pp. 14-25. Vou salientar alguns pontos ali abordados.
As justificativas do MEC para a utilização da expressão parâmetros curriculares ao invés de currículo básico incluem as preocupações de: garantir a autonomia das diferentes instituições na definição de propostas próprias; não imprimir caráter obrigatório à programação apresentada; abrir-se a revisões periódicas e sistemáticas. Além disso, supõem a idéia de referencial para o estabelecimento de uma política de ensino para o país e a reestruturação de propostas educacionais gerais, preservando-se as especificidades locais. Na aparência, tudo muito democrático.
No entanto, a definição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), tanto nos objetivos declarados, quanto no processo de elaboração e no produto apresentado, reflete o autoritarismo da chamada visão "científico-racional". Quanto aos objetivos: ao definir as capacidades a serem formadas nos alunos, os PCN pretendem constituir-se "em uma referência para os investimentos do Estado" na educação, visando subsidiar e orientar: a elaboração ou revisão curricular; a formação inicial e continuada dos professores; a produção de livros e outros materiais didáticos; as discussões pedagógicas internas às escolas; a elaboração de projetos educativos; a avaliação do sistema nacional de educação. Como acreditar em não obrigatoriedade, com todas essas finalidades declaradas? Especialmente no que se refere à avaliação, sabe-se o quanto ela pode vir a dirigir e moldar, ao invés de simplesmente "orientar e subsidiar". Não nos esqueçamos das avaliações "externas", realizadas em todos os níveis...
No processo de elaboração, priorizou-se a ação de técnicos e especialistas ("competentes"), relegando-se ao professorado um papel burocrático, no fim da linha. Depois de tudo definido, ao nível do MEC e das Secretarias de Educação, é que as equipes pedagógicas das escolas entram em ação, para adequar o estabelecido à sua realidade. Na verdade, o que sobra aos professores/as é o planejamento e execução de projetos específicos. A "consulta" se deu a posteriori: acadêmicos e professores - sem explicitação dos critérios de seleção - foram acionados individualmente, não a partir de instituições ou entidades, e solicitados a apreciar os documentos, sendo submetidos ao constrangimento de decidir, pessoalmente, sobre emitir ou não o parecer e, em qualquer dos casos, tendo que buscar, por si próprios, os meios de tornar pública sua decisão e de divulgar suas opiniões acerca dos PCN, enviadas ou não ao MEC. Aos que optaram por enviar seu parecer, não se ofereceu qualquer possibilidade de controle sobre o uso que dele seria feito. Os seminários regionais, com participação de representantes de Secretarias de Educação e de instituições públicas e privadas, não apresentaram espaço à participação do professorado.
Sobre o produto apresentado, considero que há problemas relativos às orientações para o tratamento dos conteúdos selecionados, às tendências pedagógicas privilegiadas e à própria concepção de conhecimento a elas subjacente. Questionável é, também, a organização por ciclos e blocos de conteúdos, com a classificação das áreas curriculares e a indicação de processos avaliativos. Na indicação de experiências pedagógicas adequadas, os PCN revelam seu caráter de guia, não de referencial. Chegam a entrar em detalhes sobre o que, quando e como ensinar, às vezes com ares de receituário.
UBES - O que levou à deterioração da Escola pública no Brasil?
N.S. Esse processo vem de longe. Quando o ensino público se reservava às elites e às camadas médias, os conteúdos e métodos procuravam acompanhar o que havia de mais avançado na pedagogia. Com o desenvolvimento industrial, iniciou-se timidamente a ampliação da instrução às massas trabalhadoras, com aumento considerável de vagas nas escolas públicas a partir do final dos anos 1950 e meados dos anos 1960. Essa expansão, porém, fez-se acompanhar da diferenciação do ensino, seja numa visão elitista, entendendo-se que o trabalhador braçal não precisa aprender as mesmas coisas que o intelectual, seja numa atitude paternalista, visando-se criar facilidades para um público que, de fato, encontrava maiores dificuldades para acompanhar um currículo moldado para quem tem outras experiências. No âmbito das políticas, a diferenciação se traduzia em menor destinação de recursos e, em conseqüência: não investimento na formação de professores aptos a trabalhar com essa nova realidade; escasso número de escolas, redundando em aumento dos turnos e seu corolário - a redução do tempo de ensino. Tais características atingem dimensão mais exacerbada nos últimos anos, com a predominância da perspectiva neoliberal, de descaso em relação aos direitos sociais dos trabalhadores.
UBES - Que avaliação a sra. faz do FUNDEF?
N.S. Parece-me democrática a idéia de fundo, pelo seu caráter distributivo. Mas o Fundef apresenta sérios problemas. De um lado, por restringir-se ao Ensino Fundamental (quando deveria englobar todo o Ensino Básico) e por deixar de lado a educação de adultos e a educação especial. De outro - e esse é o principal problema - , por se dar sob a ótica da redução de custos, com a falsa alegação de que são suficientes os recursos disponíveis. Além disso, na transferência de responsabilidades aos municípios, deixou-se às instâncias com menor poder exatamente o nível que apresenta mais problemas e que exigiria ações conjuntas, com envolvimento maior dos Estados e da União, não somente no repasse de recursos financeiros e seu controle. Os municípios mais pobres podem até ter tido alguma melhoria, mas ainda insignificante, diante das graves necessidades. E são eles os que enfrentam também a ausência de quadros e infra-estrutura para dar conta de aspectos relativos à qualidade de ensino.
UBES - O que a sra. espera do próximo governo no setor educacional?
N.S. Tenho repetido que as necessárias mudanças na educação têm íntima relação com mudanças de base na sociedade: dependem delas, ao mesmo tempo em que podem impulsioná-las. O governo eleito assumiu o compromisso de incrementar a recuperação do desenvolvimento, com distribuição de renda. É de se esperar que dê conseqüência a um novo projeto, de caráter nacional, democrático e social, em contraposição ao projeto neoliberal (de submissão ao imperialismo, restrição das liberdades para o povo e desrespeito aos direitos sociais dos trabalhadores). Seu principal desafio consiste em inaugurar novo ciclo de crescimento em novas bases e, ao mesmo tempo, assumir a iniciativa de um conjunto de medidas distributivas, como o aumento do nível de emprego, a elevação progressiva do salário mínimo, a erradicação da fome, o enfrentamento da causa social da violência urbana.
A educação insere-se nesse contexto e exige medidas voltadas para a erradicação do analfabetismo - passando por ações de emergência junto a adolescentes, jovens e adultos que não tiveram acesso à escola ou dela se evadiram precocemente - mas implicando, necessariamente, o compromisso com a manutenção e desenvolvimento de um ensino de qualidade às atuais crianças, para que amanhã não venham a ser demanda de programas de alfabetização de jovens e adultos. E, ainda, para que tenham acesso garantido aos níveis superiores de ensino. Isto corresponde à necessidade de recuperar a idéia de sistema nacional de educação, com articulação dos graus, níveis, séries, modalidades de ensino e mecanismos democráticos de passagem de uns a outros, em regime de co-responsabilidade entre as instâncias gestionárias e as esferas de poder. Um sistema pautado nos seguintes princípios básicos: a educação como direito de todo cidadão; o dever do Estado na garantia da escola pública, gratuita, universal e laica; a igualdade de oportunidades e condições para o acesso à cultura, nas suas múltiplas manifestações, como fator de desenvolvimento das potencialidades do educando e de sua formação integral. Não é demais lembrar algumas diretrizes importantes: ampliação das oportunidades de acesso e permanência das massas populares na escola pública; garantia de boa qualidade do ensino ali ministrado; participação democrática da população organizada na gestão das instituições escolares e nos órgãos de decisão sobre o ensino; valorização dos profissionais da educação.
Aspecto de vital importância a ser enfrentado pelo próximo governo é a reversão das orientações neoliberais que predominaram nos últimos anos, das quais a mais premente é a substituição da lógica da redução de custos pela prática do aumento de investimento. Quer dizer, há que se sepultar a expressão gasto com educação em favor da idéia de destinação de recursos. Aqui, urgência urgentíssima deve ser dada ao aumento do percentual do PIB aplicado à educação - matéria tratada no Plano Nacional de Educação da Sociedade Brasileira e que, mesmo tendo sofrido redução no PNE aprovado no Congresso Nacional, foi insistentemente vetada por FHC. Em matéria de financiamento é necessário, ainda, empreender mecanismos democráticos e eficazes de controle da aplicação das normas constitucionais quanto aos percentuais das receitas da União, dos Estados e do Município, efetivamente para manutenção e desenvolvimento do ensino. Além disso, repensar a criação, administração, controle e avaliação de fundos, contemplando todos os níveis e modalidades de ensino.
Obviamente, quando se fala em expectativas face ao novo governo, é imprescindível pensar-se na contraparte das organizações populares. Nossa participação não cessa com a eleição, muito ao contrário: exige que se garanta sustentação ao novo projeto, tanto sob a forma de apresentação de propostas e atuação concreta na sua viabilização, quanto na avaliação responsável de seus encaminhamentos. Nisto, as representações estudantis podem cumprir um importante papel e, creio, é esta a perspectiva da UBES.
São Vicente, 26/11/02
NEREIDE SAVIANI
Um resumo da biografia de Nereide Saviane
NEREIDE SAVIANI (1947) nasceu em Amparo-SP. Cursou o primário em escola de emergência da Zona Leste da Capital, o ginásio e o normal em escola particular confessional da mesma região.
Atuou como professora primária em escolas oficiais da periferia de São Paulo e na Escola de Aplicação da FEUSP; e como alfabetizadora e orientadora pedagógica de Educação de Adultos.
Integrou equipes de assessoria técnica, coordenação de programas e elaboração curricular de ensino regular e supletivo das Secretarias Municipal e Estadual de São Paulo.
No ensino superior, foi monitora do Ciclo Básico, quando aluna do 4º ano de Pedagogia da PUC/SP (1972); lecionou em cursos de Pedagogia (História da Educação) e de Literatura (Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º Graus).
Titulou-se Mestra em Supervisão e Currículo pela PUC/SP (1981) e Doutora em História e Filosofia da Educação (1993) pela mesma Universidade.
É autora de trabalhos e artigos sobre temáticas pedagógicas e sobre políticas educacionais, apresentados em eventos científicos nacionais e internacionais e publicados em periódicos nacionais.
Tem integrado equipes de estudos e pesquisas sobre pensamento educacional brasileiro, instituição escolar e pratica pedagógica, e orientado pesquisas de mestrado e doutorado envolvendo análises de teorias pedagógicas, reformas educacionais, programas e práticas de formação docente, propostas curriculares, aspectos da organização do trabalho pedagógico.
Tem ministrado cursos e proferido palestras em vários eventos promovidos por órgãos oficiais e não-governamentais ligados ao ensino básico, instituições de ensino superior, associações cientificas e sindicais, em municípios do estado de São Paulo e de outros estados da federação.
De 1994 a 2001 integrou o corpo docente do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade (antigo História e Filosofia da Educação), da PUC/SP. Atualmente é professora do mestrado stricto sensu em Educação da Universidade Católica da Santos (UniSantos).