.:: Relendo os clássicos brasileiros: os enfrentamentos no tempo e permanências

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Um feliz Natal e um 2004 repleto de realizações e partilha. Com carinho, Mara
31.10.04
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A Universidade Operacional

A Reforma do Estado brasileiro pretende modernizar e racionalizar as atividades estatais, redefinidas e distribuídas em setores, um dos quais é designado Setor dos Serviços Não-Exclusivos do Estado, isto é, aqueles que podem ser realizados por instituições não estatais, na qualidade de prestadoras de serviços. O Estado pode prover tais serviços, mas não os executa diretamente nem executa uma política reguladora dessa prestação. Nesses serviços estão incluídas a educação, a saúde, a cultura e as utilidades públicas, entendidas como "organizações sociais" prestadoras de serviços que celebram "contratos de gestão" com o Estado.
A Reforma tem um pressuposto ideológico básico: o mercado é portador de racionalidade sociopolítica e agente principal do bem-estar da República. Esse pressuposto leva a colocar direitos sociais (como a saúde, a educação e a cultura) no setor de serviços definidos pelo mercado. Dessa maneira, a Reforma encolhe o espaço público democrático dos direitos e amplia o espaço privado não só ali onde isso seria previsível ? nas atividades ligadas à produção econômica ?, mas também onde não é admissível ? no campo dos direitos sociais conquistados.
A posição da universidade no setor de prestação de serviços confere um sentido bastante determinado à idéia de autonomia universitária e introduz termos como "qualidade universitária", "avaliação universitária" e "flexibilização da universidade".
De fato, a autonomia universitária se reduz à gestão de receitas e despesas, de acordo com o contrato de gestão pelo qual o Estado estabelece metas e indicadores de desempenho, que determinam a renovação ou não renovação do contrato. A autonomia significa, portanto, gerenciamento empresarial da instituição e prevê que, para cumprir as metas e alcançar os indicadores impostos pelo contrato de gestão, a universidade tem "autonomia" para "captar recursos" de outras fontes, fazendo parcerias com as empresas privadas.
A "flexibilização" é o corolário da "autonomia". Na linguagem do Ministério da Educação, "flexibilizar" significa: 1) eliminar o regime único de trabalho, o concurso público e a dedicação exclusiva, substituindo-os por "contratos flexíveis", isto é, temporários e precários; 2) simplificar os processos de compras (as licitações), a gestão financeira e a prestação de contas (sobretudo para proteção das chamadas "outras fontes de financiamento", que não pretendem se ver publicamente expostas e controladas); 3) adaptar os currículos de graduação e pós-graduação às necessidades profissionais das diferentes regiões do país, isto é, às demandas das empresas locais (aliás, é sistemática nos textos da Reforma referentes aos serviços a identificação entre "social" e "empresarial"; 4) separar docência e pesquisa, deixando a primeira na universidade e deslocando a segunda para centros autônomos.
A "qualidade" é definida como competência e excelência, cujo critério é o "atendimento às necessidades de modernização da economia e desenvolvimento social"; e é medida pela produtividade, orientada por três critérios: quanto uma universidade produz, em quanto tempo produz e qual o custo do que produz. Em outras palavras, os critérios da produtividade são quantidade, tempo e custo, que definirão os contratos de gestão. Observa-se que a pergunta pela produtividade não indaga: o que se produz, como se produz, para que ou para quem se produz, mas opera uma inversão tipicamente ideológica da qualidade em quantidade. Observa-se também que a docência não entra na medida da produtividade e, portanto, não faz parte da qualidade universitária, o que, aliás, justifica a prática dos "contratos flexíveis". Ora, considerando-se que a proposta da Reforma separa a universidade e o centro de pesquisa, e considerando-se que a "produtividade" orienta o contrato de gestão, cabe indagar qual haverá de ser o critério dos contratos de gestão da universidade, uma vez que não há definição de critérios para "medir" a qualidade da docência.
O léxico da Reforma é inseparável da definição da universidade como "organização social" e de sua inserção no setor de serviços não-exclusivos do Estado. Ora, desde seu surgimento (no século 13 europeu), a universidade sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de autonomia do saber diante da religião e do Estado, portanto na idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão.
Por isso mesmo, a universidade européia tornou-se inseparável das idéias de formação, reflexão, criação e crítica. Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos, com a conquista da educação e da cultura como direitos, a universidade tornou-se também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa idéia, seja para opor-se a ela, a instituição universitária não pôde furtar-se à referência à democracia como idéia reguladora, nem pôde furtar-se a responder, afirmativa ou negativamente, ao ideal socialista.
Que significa, então, passar da condição de instituição social à de organização social?
Uma organização difere de uma instituição por definir-se por uma prática social, qual seja, a de sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso, que para a instituição social universitária é crucial, é, para a oganização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que o onde existe.
A instituição social aspira à universalidade. A organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si como referência, num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares. Em outras palavras, a instituição percebe inserida na divisão social e política e busca definir uma universalidade (ou imaginária ou desejável) que lhe permita responder às contradições impostas pela divisão. Ao contrário, a organização pretende gerir seu espaço e tempo particulares aceitando como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão social, e seu alvo não é responder às contradições, e sim vencer a competição com seus supostos iguais.
Como foi possível passar da idéia da universidade como instituição social à sua definição como organização prestadora de serviços?
A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que balizavam a identidade de classe e as formas da luta de classes. A sociedade aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares e programas particulares, competindo entre si.
Sociedade e Natureza são reabsorvidas uma na outra e uma pela outra porque ambas deixaram de ser um princípio interno de estruturação e diferenciação das ações naturais e humanas para se tornarem, abstratamente, "meio ambiente"; e "meio ambiente" instável, fluido, permeado por um espaço e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer densidade material; "meio ambiente" perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, programado, planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica e jogos de poder.
Por isso mesmo, a permanência de uma organização depende muito pouco de sua capacidade interna e muito mais de sua capacidade de adaptar-se celeremente a mudanças rápidas da superfície do "meio ambiente". Donde o interesse pela idéia de flexibilidade, que indica a capacidade adaptativa a mudanças contínuas e inesperadas. A organização pertence à ordem biológica da plasticidade do comportamento adaptativo.
A passagem da universidade da condição de instituição à de organização insere-se nessa mudança geral da sociedade, sob os efeitos da nova forma capital, e ocorreu em duas fases sucessivas, também acompanhando as sucessivas mudanças do capital. Numa primeira fase, tornou-se universidade funcional; na segunda, universidade operacional. A universidade funcional estava voltada para a formação rápida de profissionais requisitados como mão-de-obra altamente qualificada para o mercado de trabalho.
Adaptando-se às exigências do mercado, a universidade alterou seus currículos, programas e atividades para garantir a inserção profissional dos estudantes no mercado de trabalho, separando cada vez mais docência e pesquisa. Enquanto a universidade clássica estava voltada para o conhecimento e a universidade funcional estava voltada diretamente para o mercado de trabalho, a nova universalidade operacional, por ser uma organização, está voltada para si mesma enquanto estrutura de gestão e de arbitragem de contratos.
Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em microrganizações que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual.
A heteronomia da universidade autônoma é visível a olho nu: o aumento insano de horas-aula, a diminuição do tempo para mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade das publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios etc. virada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde este se encontra, a universidade operacional opera e por isso mesmo não age. Não surpreende, então, que esse operar co-opere para sua contínua desmoralização pública e degradação interna.
Que se entende por docência e pesquisa, na universidade operacional, produtiva e flexível?
A docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência, ricos em ilustrações e com duplicatas em CD?s. O recrutamento de professores é feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de conhecimentos de sua disciplina e as relações entre ela e outras afins ? o professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para a pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e precários, ou melhor, "flexíveis". A docência é pensada como habilitação rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam-se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão entre pesquisadores e treino para novos pesquisadores. Transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: formação.
A desvalorização da docência teria significado a valorização excessiva da pesquisa? Ora, o que é a pesquisa na universidade operacional?
À fragmentação econômica, social e política, imposta pela nova forma do capitalismo, corresponde uma ideologia autonomeada pós-moderna. Essa nomenclatura pretende marcar a ruptura com as idéias clássica e ilustradas, que fizeram a modernidade. Para essa ideologia, a razão, a verdade e a história são mitos totalitários; o espaço e o tempo são sucessão efêmera e volátil de imagens velozes e a compressão dos lugares e instantes na irrealidade virtual, que apaga todo contato com o espaço-tempo enquanto estrutura do mundo; a subjetividade não é a reflexão, mas a intimidade narcísica, e a objetividade não é o conhecimento do que é exterior e diverso do sujeito, e sim um conjunto de estratégias montadas sobre jogos de linguagem, que representam jogos de pensamento.

A história do saber aparece como troca periódica de jogos de linguagem e de pensamento, isto é, como invenção e abandono de "paradigmas", sem que o conhecimento jamais toque a própria realidade. O que pode ser a pesquisa numa universidade operacional sob a ideologia pós-moderna? O que há de ser a pesquisa quando razão, verdade, história são tidas por mitos, espaço e tempo se tornaram a superfície achatada de sucessão de imagens, pensamento e linguagem se tornaram jogos, constructos contigentes cujo valor é apenas estratégico?
Numa organização, uma "pesquisa" é uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em outras palavras, uma "pesquisa" é um "survey" de problemas, dificuldades e obstáculos para a realização do objetivo, e um cálculo de meios para soluções parciais e locais para problemas e obstáculos locais. Pesquisa, ali, não é conhecimento de alguma coisa, mas posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização não há tempo para a reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos constituídos, sua mudança ou sua superação. Numa organização, a atividade cognitiva não tem como nem por que realizar-se.
Em contrapartida, no jogo estratégico da competição do mercado, a organização se mantém e se firma se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos micro-problemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevida da organização, torna-se real e propõe a especialização como estratégia principal e entende por "pesquisa" a delimitação estratégica de um campo de intervenção e controle. É evidente que a avaliação desse trabalho só pode ser feita em termos compreensíveis para uma organização, isto é, em termos de custo-benefício, pautada pela idéia de produtividade, que avalia em quanto tempo, com que custo e quanto foi produzido.
Em suma, se por pesquisa entendermos a investigação de algo que nos alcança na interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído, descoberta, invenção e criação; se por pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que ainda não foi pensado nem dito; se por pesquisa entendermos uma visão compreensiva de totalidades e sínteses abertas que suscitam a interrogação e a busca; se por pesquisa entendermos uma ação civilizatória contra a barbárie social e política, então, é evidente que não há pesquisa na universidade operacional.
Essa universidade não forma e não cria pensamento, despoja a linguagem de sentido, densidade e mistério, destrói a curiosidade e a admiração que levam à descoberta do novo, anula toda pretensão de transformação histórica como ação consciente dos seres humanos em condições materialmente determinadas.
Marilena Chauí é professora no departamento de filosofia da USP, autora de "Cultura e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real" (Companhia das Letras), entre outros. Ela escreve regularmente na seção "Brasil 500 d. C.", da Folha.
Folha de São Paulo, 09 de maio de 1999. Caderno Mais!





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CONFERÊNCIA DE ABERTURA DA ANPEd
POÇOS DE CALDAS 05/10/2003
A UNIVERSIDADE PÚBLICA SOB NOVA PERSPECTIVA
I.
A universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é assim que vemos no interior da instituição universitária a presença de opiniões, atitudes e projetos conflitantes que exprimem divisões e contradições da sociedade como um todo. Essa relação interna ou expressiva entre universidade e sociedade é o que explica, aliás, o fato de que, desde seu surgimento, a universidade pública sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na idéia de um reconhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão. Em outras palavras, sobretudo depois da Revolução Francesa, a universidade concebe-se a si mesma como uma instituição republicana e, portanto, pública e laica. A partir das revoluções sociais do Século XX e com as lutas sociais e políticas desencadeadas a partir delas a educação e a cultura passaram a ser concebidas como constitutivas da cidadania e, portanto, como direitos dos cidadãos, fazendo com que, além da vocação republicana, a universidade se tornasse também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa idéia, seja para opor-se a ela, no decorrer de Século XX a instituição universitária não pôde furtar-se à referência à democracia como uma idéia reguladora. Por outro lado, a contradição entre o ideal democrático de igualdade e a realidade da divisão e luta de classes, obrigou a universidade a tomar posição diante do ideal socialista.
Vista como uma instituição social cujas mudanças acompanham as transformações sociais, econômicas e políticas, e como instituição social de cunho republicano e democrático, a relação entre universidade e Estado também não pode ser tomada como relação de exterioridade, pois o caráter republicano e democrático da universidade é determinado pela presença ou ausência da prática republicana e democrática do Estado. Em outras palavras, a universidade como instituição social diferenciada e autônoma só é possível em um Estado republicano e democrático.
Postos os termos desta maneira, poderia supor-se que, em última instância, a universidade, mais do que determinada pela estrutura da sociedade e do Estado, seria antes um reflexo deles. Não é, porém, o caso. É exatamente por ser uma instituição social diferenciada e definida por sua autonomia intelectual que a universidade pode relacionar-se como o todo da sociedade com o Estado de maneira conflituosa, dividindo-se internamente entre os que são favoráveis e os que são contrários maneira como a sociedade de classe e o Estado reforçam a divisão e a exclusão sociais, impedem a concretização republicana da instituição universitária e suas possibilidades democráticas.
Se essas observações tiverem alguma verdade, elas poderão nos ajudar a enfrentar com mais clareza a mudança sofrida por nossa universidade pública nos últimos anos, particularmente como a reforma do Estado realizada no último governo da república. De fato, essa reforma, ao definir os setores que compõem o Estado, designou um desses setores como Setor de Serviços não exclusivos do Estado e nele colocou a educação, a saúde e a cultura. Essa localização da educação no setor de serviços não exclusivos do Estado significou: 1) que a educação deixou de ser concebida como um direito e passou a ser considerada um serviço; 2) que a educação deixou de ser considerada um serviço público e passou a ser considerada um serviço que pode ser privado ou privatizado. Mas não é só isso. A reforma do Estado definiu a universidade como uma organização social e não como uma instituição social.
Uma organização difere de uma instituição por definir-se por uma prática social determinada por sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios (administrativos) particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. Por ser uma administração, é regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso que para a instituição social universitária é crucial, é, para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e onde existe.
A instituição social aspira à universalidade. A organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares. Em outras palavras, a instituição se percebe inserida na divisão social e política e busca definir uma universalidade (ou imaginária ou desejável) que lhe permita responder às contradições impostas pela divisão. Ao contrário, a organização pretende gerir seu espaço e tempo particulares aceitando como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão social, e seu alvo não é responder às contradições e sim vencer a competição com seus supostos iguais.
Como foi possível passar da idéia da universidade como instituição social à sua definição como organização prestadora de serviços?
A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que balizavam a identidade de classe e as formas de luta de classes. A sociedade aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares e programas particulares, competindo entre si. Sociedade e Natureza são reabsorvidas uma na outra e uma pela outra porque ambas deixaram de ser um princípio interno de estruturação e diferenciação das ações naturais e humanas para se tornarem, abstratamente, "meio ambiente"; e "meio ambiente" instável, fluido, permeado por um espaço e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer densidade material; "meio ambiente" perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, programado, planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica e jogos de poder. Por isso mesmo, a permanência de uma organização depende muito pouco de sua estrutura interna e muito mais de sua capacidade de adaptar-se celeremente a mudanças rápidas da superfície do "meio ambiente". Donde o interesse pela idéia de flexibilidade, que indica a capacidade adaptativa a mudanças contínuas e inesperadas.
A visão organizacional da universidade produziu aquilo que, segundo Freitag (Le naufrage de l?université), podemos denominar como universidade operacional. Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em micro organizações que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual. A heteronomia da universidade autônoma é visível a olho nu: o aumento insano de horas-aula, a diminuição do tempo para mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios, etc.
Nela, a docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência, ricos em ilustrações e com duplicata em CDs. O recrutamento de professores é feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de conhecimentos de sua disciplina e as relações entre elas e outras afins ? o professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e precários, ou melhor, "flexíveis". A docência é pensada como habilitação rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam-se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão entre pesquisadores e treino para novos de pesquisadores. Transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação.
Por sua vez, a pesquisa segue o padrão organizacional. Numa organização, uma "pesquisa" é uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em outras palavras, uma "pesquisa" é um "survey" de problemas, dificuldades e obstáculos para a realização de um objetivo, e um cálculo de meios para soluções parciais e locais para problemas e obstáculos locais. O survey recorta a realidade de maneira a focalizar apenas o aspecto sobre o qual está destinada a intervenção imediata e eficaz. Em outras palavras, o survey opera por fragmentação. Numa organização, portanto, pesquisa não é conhecimento de alguma coisa, mas posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização não há tempo para reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos instituídos, sua mudança ou sua superação. Numa organização, a atividade cognitiva não tem como nem por que realizar-se. Em contrapartida, no jogo estratégico da competição do mercado, a organização se mantém e se firma se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos micro-problemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevida da organização, torna-se real e propõe a especialização como estratégia principal e entende por "pesquisa" a delimitação estratégica de um campo de intervenção e controle. É evidente que a avaliação desse trabalho só pode ser feita em termos compreensíveis para uma organização, isto é, em termos de custo-benefício, pautada a idéia de produtividade, que avalia em quanto tempo, com que custo e quanto foi produzido. Reduzida a uma organização, a universidade abandona a formação e a pesquisa para lançar-se na fragmentação competitiva. Mas o que ela faz? Porque está privatizada e a maior parte de suas pesquisas é determinada pelas exigências de mercado impostas pelos financiadores. Isso significa que a universidade pública produz um conhecimento destinado à apropriação privada. Essa apropriação, aliás, é inseparável da mudança profunda sofrida pelas ciências em sua relação com a prática.
De fato, até os anos 1940, a ciência era uma investigação teórica com aplicações práticas. Sabemos, porém, que as mudanças no modo de produção capitalista e na tecnologia transformaram duplamente a ciência: em primeiro lugar, ela deixou de ser a investigação de uma realidade externa ao investigador para tornar-se a construção da própria realidade do objeto científico por meio de experimentos e de constructos lógico-matemáticos ? como escreveu um filósofo, a ciência tornou-se manipulação de objetos construídos por ela mesma; em segundo lugar e, como conseqüência, ela se tornou uma força produtiva e, como tal inserida na lógica do modo de produção capitalista. A ciência deixou de ser teoria com aplicação prática e tornou-se um componente do próprio capital. Donde as novas formas de financiamento das pesquisas, a submissão delas às exigências do próprio capital e a transformação da universidade numa organização ou numa entidade operacional.
II.
Tomada sob a perspectiva operacional, a universidade pública corre o risco de passar por uma modernização que a faça contemporânea do Século XXI, sem que se toque nas causas que deram origem a esse modelo universitário. Desse desejo de modernização acrítico e pouco reflexivo, são sinais duas idéias apresentadas com insistência crescente pelos organismos internacionais que subsidiam e subvencionam universidades públicas. A primeira idéia é a de sociedade do conhecimento; a segunda, uma nova concepção da educação permanente ou continuada.
A transformação do capital e da ciência, a que nos referimos acima, articulada às mudanças tecnológicas referentes à circulação da informação produziram a idéia de sociedade do conhecimento, na qual o valor mais importante é o uso intensivo e competitivo dos conhecimentos.
Mas o que significa exatamente sociedade do conhecimento?
Ao se tornarem forças produtivas, o conhecimento e a informação passaram a compor o próprio capital, que passa a depender disso para sua acumulação e reprodução. Na medida em que, na forma atual do capitalismo, a hegemonia econômica pertence ao capital financeiro e não ao capital produtivo, a informação prevalece sobre o próprio conhecimento, uma vez que o capital financeiro opera com riquezas puramente virtuais cuja existência se reduz à própria informação. Entre outros efeitos, essa situação produz um efeito bastante preciso: o poder econômico se baseia na posse de informações e, portanto, essas se tornam secretas e constituem um campo de competição econômica e militar sem precedentes, ao mesmo tempo em que, necessariamente, bloqueiam poderes democráticos, os quais se baseiam no direito à informação, tanto o direito de obtê-las como o de produzi-las e fazê-las circular socialmente. Em outras palavras, a assim chamada sociedade do conhecimento, do ponto de vista da informação, é regida pela lógica do mercado (sobretudo o financeiro), de sorte que ela não é propícia nem favorável à ação política da sociedade civil e ao desenvolvimento efetivo de informações e conhecimentos necessários à vida social e cultural. Em resumo: a noção de sociedade do conhecimento, longe de indicar uma possibilidade de grande avanço e desenvolvimento autônomo das universidades enquanto instituições sociais comprometidas com a vida de suas sociedades e articuladas a poderes e direitos democráticos, indica o contrário, isto é, tanto a heteronomia universitária (enquanto a universidade produz conhecimentos destinados ao aumento de informações para o capital financeiro, submetendo-se às suas necessidades e à sua lógica) como a irrelevância da atividade universitária (quando suas pesquisas são autonomamente definidas ou quando procuram responder às demandas sociais e políticas de suas sociedades). O sinal da heteronomia é claro, por exemplo, na área das chamadas pesquisas básicas nas universidades latino-americanas, nas quais os objetos e métodos de pesquisa são determinados pelos vínculos com grandes centros de pesquisa dos países que possuem a hegemonia econômica e militar, pois tais vínculos são postos tanto como condição para o financiamento das pesquisas quanto como instrumentos de reconhecimento acadêmico internacional. O sinal da irrelevância, por outro lado, aparece claramente na deterioração e no desmantelamento das universidades públicas, consideradas cada vez mais um peso para o Estado (donde o avanço da privatização, da terceirização e da massificação) e um elemento perturbador da ordem econômica (donde a desmoralização crescente do trabalho universitário público).
Um outro aspecto que tem sido muito enfatizado pelos organismos internacionais que discutem o ensino superior é que a sociedade do conhecimento é inseparável da velocidade, isto é, a acentuada redução do tempo entre a aquisição de um conhecimento e sua aplicação tecnológica, a ponto dessa aplicação acabar determinando o conteúdo da própria investigação científica. Fala-se numa explosão do conhecimento, quantitativa e qualitativa, tanto no interior das disciplinas clássicas como com a criação de disciplinas novas e novas áreas de conhecimento. Segundo alguns autores, o conhecimento levou 1.750 anos para duplicar-se pela primeira vez, no início da era cristã; depois, passou a duplicar-se a cada 150 anos, depois a cada 50 anos e estima-se que, a partir de 2000, duplicará a cada 73 dias a afirma-se que a cada 4 anos duplica-se a quantidade de informação disponível no mundo.
No entanto, penso que é importante observar o seguinte. Penso que se poderia acrescentar aqui: as cifras sobre a quantidade e a velocidade dos conhecimentos, as cifras provenientes da publicação de artigos nos quais são apresentadas descobertas científicas, pode levar-nos ainda a uma outra reflexão, qual seja: a quantidade de descobertas implicou numa mudança na definição de uma ciência? Em outras palavras, a química, a matemática, a biologia e a história (para ficarmos com os exemplos mais freqüentes) foram redefinidas em termos de seus objetos, métodos, procedimentos, de tal maneira que poderíamos dizer, por exemplo, que, hoje, a mudança epistemológica na química equivaleria à mudança da alquimia para a química no século XVII? Ou que, hoje, a mudança epistemológica na história equivaleria àquela que, no século XIX, rompeu com a tradição historiográfica de narrativa dos memorabilia, levou a separar natureza e cultura, a considerar a historicidade como o modo de ser do homem e a buscar uma solução para o tema clássico (que define a história desde Heródoto e Tucídides) da alternativa entre contingência e necessidade? Ou ainda: sabemos que a mudança epistemológica fundamental entre a ciência clássica e a contemporânea (século XX) encontra-se, de um lado, no fato de que a primeira julgava alcançar as coisas tais como são em si mesmas enquanto a segunda não titubeia em tornar seus objetos como constructos, e, de outro, no fato de que a ciência clássica julgava operar com as idéias de ordem e conexão causais necessárias enquanto a ciência contemporânea tende abandonar a idéia de leis causais e a elaborar noções como as de probabilidade, regularidade, freqüência, simetria, etc. Ao falar em explosão do conhecimento e em explosão epistemológica, podemos dizer que a sociedade do conhecimento introduziu mudanças epistemológicas de tal monta que transformou as ciências? Houve mudança na estrutura das ciências nos últimos 30/40 anos?
Essas perguntas são suscitadas por dois motivos principais: 1) o fato, por exemplo, de que a química descubra novos elementos ou que a matemática desenvolva novos teoremas poderia ser considerado simplesmente como aumento quantitativo dos conhecimentos, cujos fundamentos não mudaram nos últimos 30/40 anos, aumento quantitativo decorrente tanto de novas tecnologias usadas nas pesquisas quanto do aumento do número de pesquisadores no mundo inteiro; 2) a quantidade de publicações precisa ser tomada cum grano salis, pois sabemos que essa quantidade pode exprimir pouca qualidade e pouca inovação porque: a) os chamados processos de avaliação da produção acadêmica, dos quais dependem a conservação do emprego, a ascensão na carreira e a obtenção de financiamento de pesquisas, são baseados na quantidade de publicação de artigos e do compadecimento a congressos e simpósios; b) a quantidade de "pontos" obtidos por um pesquisador também depende de que consiga publicar seus artigos nos periódicos científicos definidos hierarquicamente pelo ranking; c) os grandes centros de pesquisa só conseguem financiamentos públicos e privados se continuamente "provarem" que estão alcançando novos conhecimentos, uma vez que a avaliação deixou cada vez mais de ser feita pelos pares e passou a ser determinada pelo critério da eficácia e da competitividade (outro sinal de nossa heteronomia). Essas perguntas também se referem a um problema de fundo, qual seja, a mudança imposta ao tempo do trabalho intelectual e científico.
Sabemos que uma das características mais marcantes da cultura contemporânea é o que David Harvey denominou como compressão espaço-temporal.
De fato, examinando a condição pós-moderna, David Harvey (A condição pós-moderna, São Paulo, Loyola, 1992) analisa os efeitos da acumulação flexível do capital, isto é, a fragmentação e dispersão da produção econômica, a hegemonia do capital financeiro, a rotatividade extrema da mão-de-obra, a obsolescência vertiginosa das qualificações para o trabalho em decorrência do surgimento incessante de novas tecnologias, o desemprego estrutural decorrente da automação e da alta rotatividade da mão-de-obra, a exclusão social, econômica e política. Esses efeitos econômicos e sociais da nova forma do capital são inseparáveis de uma transformação sem precedentes na experiência do espaço e do tempo. Essa transformação é designada por Harvey com a expressão compressão espaço-temporal, isto é, o fato de que a fragmentação e a globalização da produção econômica engendram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e dispersão espacial e temporal e, de outro, sob os efeitos das tecnologias da informação, a compressão do espaço ? tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças nem fronteiras ? e a compressão do tempo ? tudo se passa agora, sem passado e sem futuro.
Podemos acrescentar à colocação de Harvey que falar do presente como muitos hoje falam, como sendo a "era da incerteza" indica menos uma compressão filosófico-científica da realidade natural e cultural e mais a aceitação da destruição econômico-social de todos os referenciais de espaço e de tempo cujo sentido se encontrava não só na percepção cotidiana, mas também nos trabalhos da geografia, da história, da antropologia e das artes. Em vez de incerteza, mais vale falar em insegurança. Ora, sabemos que a insegurança não gera conhecimento e ação inovadora e sim medo e paralisia, submissão ao instituído, recusa da crítica, conservadorismo e autoritarismo.
Na verdade, fragmentação e dispersão do espaço e do tempo condicionam sua reunificação sob um espaço diferenciado e um tempo efêmero, ou sob um espaço que se reduz a uma superfície plana de imagens e sob um tempo que perdeu a profundidade e se reduz ao movimento de imagens velozes e fugazes.
No caso da produção artística e intelectual (Humanidades), a compressão do espaço e do tempo transformou o mercado da moda (isto é, do descartável, do efêmero determinado pelo mercado) em paradigma: as obras de arte e de pensamento duram um "saison" e, descartados, desaparecem sem deixar vestígio. Para participar desse mercado efêmero, a literatura, por exemplo, abandona o romance pelo conto, os intelectuais abandonam o livro pelo "paper", o cinema é vencido pelo vídeo-clip ou pelas grandes montagens com "efeitos especiais". Para a ideologia pós-moderna, a razão, a verdade e a história são mitos totalitários; o espaço e o tempo são sucessão efêmera e volátil das imagens velozes e a compressão dos lugares e instantes na irrealidade virtual, que apaga todo contato com o espaço-temporal enquanto estrutura do mundo; a subjetividade não é a reflexão, mas a intimidade narcísica, e a objetividade não é o conhecimento do que é exterior e diverso do sujeito, e sim um conjunto de estratégias montadas sobre jogos de linguagem, que representam jogos de pensamento. A história do saber aparece como troca periódica de jogos de linguagem e de pensamento, isto é, como invenção e abandono de "paradigmas", sem que o conhecimento jamais toque a própria realidade.
A compressão espaço-temporal produz efeitos também nas universidades: diminuição do tempo de graduação e pós-graduação, do tempo para realização de dissertações de mestrado e teses de doutorado. A velocidade faz com que, no plano da docência, as disciplinas abandonem, cada vez mais, a necessidade de transmitir aos estudantes suas próprias histórias, o conhecimento de seus clássicos, as questões que lhes deram nascimento e as transformações dessas questões. Em outras palavras: a absorção do espaço-tempo do capital financeiro e do mercado da moda conduzem ao abandono do núcleo fundamental do trabalho universitário, qual seja, a formação.
E isso torna-se também muito evidente quando se vê a discussão da segunda idéia, qual seja, a educação continuada ou permanente. Afirma-se que diante de um mundo globalizado e em transformação constante, a educação permanente ou continuada é uma estratégia pedagógica indispensável, pois somente com ela é possível a adaptação às mudanças incessantes se se quiser manter-se ativo no mercado de trabalho. A educação permanente ou continuada significa que a educação não se confunde com os anos escolares, isto é, a educação deixa de ser preparação para a vida e se torna educação durante toda a vida.
Precisamos ponderar crítica e reflexivamente sobre essa idéia. De fato, não se pode chamar isso de educação permanente. Como vimos acima, a nova forma do capital produz a obsolescência rápida da mão-de-obra e produz o desemprego estrutural. Por isso, passa-se a confundir educação e "reciclagem", exigida pelas condições do mercado de trabalho. Trata-se de aquisições de técnicas por meio de processos de adestramento e treinamento para saber empregá-las de acordo com as finalidades das empresas. Tanto é assim, que muitas empresas possuem escolas, centros de treinamento e reciclagem de seus empregados, ou fazem convênios com outras empresas destinadas exclusivamente a esse tipo de atividade. E essa atividade pressupõe algo básico, ou seja, a escolaridade propriamente dita. Muitas vezes também, a competição no mercado de trabalho exige que o candidato a emprego apresente um currículo com mais créditos do que outros ou que, no correr dos anos, acrescente créditos ao seu currículo, mas dificilmente poderíamos chamar a isso de educação permanente porque a educação significa um movimento de transformação interna daquele que passa de um suposto saber (ou ignorância) ao saber propriamente dito (ou à compreensão de si, dos outros, da realidade, da cultura acumulada e da cultura no seu presente ou se fazendo). A educação é inseparável da formação e é por isso que ela só pode ser permanente.
III.
Se quisermos tomar a universidade pública sob uma nova perspectiva, precisamos começar exigindo, antes de tudo, que o Estado não tome a educação pelo prisma do gasto público e sim como investimento social e político, o que só é possível se a educação for considerada um direito e não um privilégio nem um serviço. A relação democrática entre Estado e universidade pública depende do modo como consideramos o núcleo da república. Este núcleo é o fundo público ou a riqueza pública e a democratização do fundo público significa investi-lo não para assegurar a acumulação e a reprodução do capital ? que é o que faz o neoliberalismo com o chamado "Estado mínimo" ? e sim para assegurar a concreticidade dos direitos sociais, entre os quais se encontra a educação. É pela destinação do fundo público aos direitos sociais que se mede a democratização do Estado e, com ela, a democratização da universidade.
A reversão também depende de que levemos a sério a idéia de formação.
O que significa exatamente formação? Antes de mais nada, como a própria palavra indica, uma relação com o tempo: é introduzir alguém ao passado de sua cultura (no sentido antropológico do termo, isto é, como ordem simbólica ou de relação com o ausente), é despertar alguém para as questões que esse passado engendra para o presente, e é estimular a passagem do instituído ao instituinte. O que Merleau-Ponty diz sobre a obra de arte recolhe o passado imemorial contido na percepção, interroga a percepção presente e busca, com o símbolo, ultrapassar a situação dada oferecendo-lhe um sentido novo que não poderia vir à existência sem a obra. Da mesma maneira, a obra de pensamento só é fecunda quando pensa e diz o que sem ela não poderia ser pensado nem dito, e sobretudo quando, por seu próprio excesso, nos dá a pensar e a dizer, criando em seu próprio interior a posteridade que irá superá-la. Ao instituir o novo sobre o que estava sedimentado na cultura, a obra de arte e de pensamento reabre o tempo e forma o futuro. Podemos dizer que há formação quando há obra de pensamento e que há obra de pensamento quando o presente é apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado como questão, pergunta, problema, dificuldade.
Pensando numa mudança da universidade pública sob a perspectiva da formação e da democratização, creio que podemos assinalar alguns pontos que são a condição e a forma dessa mudança:
Colocar-se claramente contra a exclusão como forma da relação social definida pelo neoliberalismo e pela globalização: tomar a educação superior como um direito do cidadão (na qualidade de direito, ela deve ser universal); defesa da universidade pública tanto pela ampliação de sua capacidade de absorver sobretudo os membros das classes populares quanto pela firme recusa da privatização dos conhecimentos, isto é, impedir que um bem público tenha apropriação privada. Romper, portanto, com o modelo proposto pelo Banco Mundial e implantado no Brasil com a pretensão de resolver os problemas da educação superior por meio da privatização das universidades públicas ou pelos incentivos financeiros dados a grupos privados para criar estabelecimentos de ensino superior provocou não só o desprestígio das universidades públicas (porque boa parte dos recursos estatais foram dirigidos às empresas universitárias) como a queda do nível do ensino superior, cuja avaliação era feita por organismos ligados às próprias empresas.
Definir a autonomia universitária não só pelo critério dos chamados "contratos de gestão", mas pelo direito e pelo poder de definir suas normas de formação, docência e pesquisa. A autonomia é entendida em três sentidos principais: a) como autonomia institucional ou de políticas acadêmicas (autonomia em relação aos governos); b) como autonomia intelectual (autonomia em relação a credos religiosos, partidos políticos, ideologia estatal, imposições empresariais e financeiras); c) como autonomia financeira que lhe permita destinar os recursos segundo as necessidades regionais e locais da docência e da pesquisa. Em outras palavras, a autonomia deve ser pensada, como autodeterminação das políticas acadêmicas, dos projetos e metas das instituições universitárias e da autônoma condução administrativa, financeira e patrimonial. Essa autonomia só terá sentido: a)internamente houver o funcionamento transparente e público das instâncias de decisão; b) externamente as universidades realizarem, de modo público e em períodos regulares fixados, o diálogo e o debate com a sociedade civil organizada e com os agentes do Estado, tanto para oferecer a todos as informações sobre a vida universitária, como para receber críticas, sugestões e demandas vindas da sociedade e do Estado. Isso significa também que a autonomia é inseparável da elaboração da peça orçamentária anual, pois é esta que define prioridades acadêmicas de docência e pesquisa, metas teóricas e sociais, bem como as formas dos investimentos dos recursos. Para que haja automia com caráter público e democrático é preciso que haja discussão dos orçamentos por todos os membros da universidade, segundo o modelo do orçamento participativo. Finalmente, a autonomia universitária só será efetiva se as universidades recuperarem o poder e a iniciativa de definir suas próprias linhas de pesquisas e prioridades, em lugar de deixar-se determinar externamente pelas agências financiadoras.
Desfazer a confusão atual entre democratização da educação superior e massificação. Para isso, três medidas principais são necessárias:
Articular o ensino superior público e outros níveis de ensino público: sem uma reforma radical do ensino fundamental e do ensino médio públicos, a pretensão republicana e democrática da universidade será inócua. A universidade pública tem que se comprometer com a mudança no ensino fundamental e no ensino médio públicos. A baixa qualidade do ensino público nos graus fundamental e médio tem encaminhado os filhos das classes mais ricas para as escolas privadas e, com o preparo que ali recebem, são eles que irão freqüentar as universidades públicas, cujo nível e cuja qualidade são superiores aos das universidades privadas. Dessa maneira, a educação superior pública tem sido conivente com a enorme exclusão social e cultural dos filhos das classes populares que não têm condições de passar da escola pública de ensino médio para a universidade pública. Portanto, somente a reforma da escola pública de ensino fundamental e médio pode assegurar a qualidade e a democratização da universidade pública. A universidade pública deixará de ser um bolsão de exclusões sociais e culturais quando o acesso a ela estiver assegurado pela qualidade e pelo nível dos outros graus do ensino público;
reformar as grades curriculares atuais e o sistema de créditos, uma vez que ambos produzem a escolarização da universidade, com a multiplicação de horas-aula, retirando dos estudantes as condições para leitura e pesquisa, isto é, para sua verdadeira formação e reflexão, além de provocarem a fragmentação e dispersão dos cursos, e estimular a superficialidade. É precisão diminuir o tempo em horas-aula e o excesso de disciplinas semestrais. Dependendo da área acadêmica, as disciplinas podem ser ministradas em cursos anuais, permitindo que o estudante se aprofunde num determinado aspecto do conhecimento. É preciso também não somente assegurar espaço para a implantação de novas disciplinas exigidas por mudanças filosóficas, científicas e sociais, como também organizar os cursos de maneira a assegurar que os estudantes possam circular pela universidade e construir livremente um currículo de disciplinas optativas que se articulam às disciplinas obrigatórias da área central de seus estudos;
assegurar, simultaneamente, a universalidade dos conhecimentos (programas cujas disciplinas tenham nacionalmente o mesmo conteúdo no que se refere aos clássicos de cada uma delas) e a especificidade regional (programas cujas disciplinas reflitam os trabalhos dos docentes-pesquisadores sobre questões específicas de suas regiões). Assegurar que os estudantes conheçam as questões clássicas de sua área e, ao mesmo tempo, seus problemas contemporâneos e as pesquisas existentes no país e no mundo sobre os assuntos mais relevantes da área. Para isso são necessárias condições de trabalho: bibliotecas dignas do nome, laboratórios equipados, informatização, bolsas de estudo para estudantes de graduação, alojamentos estudantis, alimentação e atendimento à saúde. Convênios de intercâmbio de estudantes entre as várias universidades do país e com universidades estrangeiras.
4. Revalorizar a docência, que foi desprestigiada e negligenciada com a chamada "avaliação da produtividade", quantitativa. Essa revalorização implica em:
a. formar verdadeiramente professores, de um lado, assegurando que conheçam os clássicos de sua área e os principais problemas nelas discutidos ao longo de sua história e, de outro lado, levando em consideração o impacto das mudanças filosóficas, científicas e tecnológicas sobre sua disciplina e sobre a formação de seus docentes;
b. oferecer condições de trabalho compatíveis com a formação universitária, portanto, infra-estrutura de trabalho (bibliotecas e laboratórios realmente equipados);
c. realizar concursos públicos constantes para assegurar o atendimento qualitativamente bom de um número crescente de estudantes em novas salas de aulas (o processo de democratização aumentará o acesso às universidades);
d. garantir condições salariais dignas que permitam ao professor trabalhar em regime de tempo integral de dedicação à docência e à pesquisa, de maneira que ele tenha condições materiais de realizar permanentemente seu processo de formação e de atualização dos conhecimentos e das técnicas pedagógicas;
e. incentivar o intercâmbio com universidades do país e as estrangeiras, de maneira a permitir a completa formação do professor, bem como familiarizá-lo com as diferenças e especificidades regionais e nacionais bem como as grandes linhas do trabalho universitário internacional.
5. Revalorizar a pesquisa, estabelecendo não só as condições de sua autonomia e as condições materiais de sua realização, mas também recusando a diminuição do tempo para a realização dos mestrados e doutorados. Quanto aos pesquisadores com carreira universitária, é preciso criar novos procedimentos de avaliação que não sejam regidos pelas noções de produtividade e de eficácia e sim pelas de qualidade e de relevância social e cultural. Essa qualidade e essa relevância dependem do conhecimento, por parte dos pesquisadores, das mudanças filosóficas, científicas e tecnológicas e seus impactos sobre as pesquisa. Quanto à relevância social das pesquisas, cabe às universidades públicas e ao Estado fazer um levantamento das necessidades do seu país no plano do conhecimento e das técnicas e estimular trabalhos universitários nessa direção, assegurando, por meio de consulta às comunidades acadêmicas regionais, que haja diversificação dos campos de pesquisa segundo as capacidades regionais e as necessidades regionais. As parcerias com os movimentos sociais nacionais e regionais pode ser de grande valia para que a sociedade oriente os caminhos da instituição universitária, ao mesmo tempo que esta, por meio de cursos de extensão e por meio de serviços especializados, poderá oferecer elementos reflexivos e críticos para a ação e o desenvolvimento desses movimentos. Ou seja, a orientação de rumos das pesquisaas pode ser feita segundo a idéia de cidadania.
6. A valorização da pesquisa nas universidades públicas exige políticas públicas de financiamento por meio de fundos públicos destinados a esse fim por intermédio de agências nacionais de incentivo à pesquisa, mas que sigam duas orientações principais: a) projetos propostos pelas próprias universidades; b) projetos propostos por setores do Estado que fizeram levantamentos locais e regionais de demandas e necessidades de pesquisas determinadas e que serão subvencionadas pelas agências. A avaliação dos projetos, para concessão de financiamento, e a avaliação dos resultados deve ser feita por comissões democraticamente escolhidas pelas comunidades universitárias, em consonância com a definição de um programa nacional de pesquisas, definido pelo conjunto das universidades após o levantamento das necessidades, interesses e inovações das pesquisapara o país. Além dessa avaliação do conteúdo, deve haver uma avaliação pública dos objetivos e aplicações das pesquisas e uma avaliação pública, feita pelo Estado, sobre o uso dos fundos públicos. Em outras palavras, a universidade deve prestar publicamente contas de suas atividades de investigação à sociedade e ao Estado;
7. adotar uma perspectiva crítica muito clara tanto sobre a idéia de sociedade do conhecimento quanto sobre a de educação permanente, tidas como idéias novas e diretrizes para a mudança da universidade sob a perspectiva da modernização. É preciso tomar a universidade sob a perspectiva de sua autonomia e de sua expressão social e política, cuidando para não correr em busca da sempiterna idéia de modernização que, no Brasil, como se sabe, sempre significa submeter a sociedade em geral e a universidades públicas; em particular, a modelos, critérios e interesses que servem ao capital e não aos direitos dos cidadãos.
Marilena Chauí
Universidade de São Paulo






28.10.04
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Cara Júlia!

Aqui, em tempos de Fogaça gritando ao mundo a sua "capacidade de mudar, cumprir o que promete, respeitar o outro" para fazer-se de vítima e convencer um eleitorado que, de repente parece ter-se esquecido de como são os conservadores no poder. De outro lado uma capacidade nossa de responsabilizar os outros pelos desacertos e incapacidades de enfrentar a burguesia local e internacional nas disputas e enfrentamentos cotidianos, e a gente sabe que isto não é fácil, e atenta que não estou culpabilizando mas, apenas reconhecendo o nosso não saber, nos instiga ao pensar. Como tens visto este processo na distância que o espaço impõe e na proximidade que o virtual oportuniza?
Mudando de assunto e particularizante como andam tuas leituras? Podemos realizar um discussão síncrona no dis 25 de novembro ou 3 de dezembro, ou ambos, no horario da aula? Há possibilidade real? Que tipo de Programa consegues disponibilizar aí? Mensager, ou ICQ ou .... . POr favor nos avisa.
Na mudança seguinte de assunto, dizer da saudade de de ti como pessoa e como aluna, nas aulas, momento em és lembradas quando trazemos os teus textos, notícias e mesmo quando imaginamos o poderias nos dizer sobre uma ou outra questão. Eu particularmente tebho vivido momentos bastante duros e de muitas aprendizagens pessoais que me fazem descobir cotidianamente minha fragilidade e força e ao mesmo tempo o quanto "não educamos" as e nas escolhas de outros e outras. Sustentar minhas posições não tem sido um aprendizado fácil, e não falo do acadêmico, do teórico e do ético. São minhas emoções que se debatem nas reloções que .estabeleço, nas perdas, nas faltas e nas dobras deste fazer-me que me desmonto e remonto a cada momento. Ficar quieta, na espera, sem fazer nada é a aprendizagem que venho tentando. Neste meu processo tu é quem tenssido penalizada, pois ao não fazer para e por uns acabo por incluir a ti, que também estas longe, numa distancia que tenho vivido como perda que não estava conseguindo te escrever.
Estava a lamber minhas feridas e não conseguia compartilhar com ninguem quase nada que me soasse sofrimento. Estou fazendo aqui o desencantamento para re-encantar a vida, voltar a trocar e estar contigo, no compartilhar com o grupo, uma vez que escolhi este meio para estarmos juntas e com o grupo da disciplina.
Pedir desculpas seria culpar-me e não é desta natureza a questão que trago. Por isto, aqui estou de novo! POdes contar comigo.
Beijos e muito carinho para que possas te sentir um pouco aqui conosco, mesmo que apenas pelas marcas que construímos em nós, com nossas memórias e no que nossas palavras conseguem trazer como nossa cosntução. Um abraço a quem nos roubando tua presença e pode fazer / compartilhar conosco tua feliciadade.





15.10.04
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COMPETÊNCIA PARA SER FELIZ
UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Humberto Cunha

Aplicação da Informática à produção pede que a escola forme indivíduos de grande cultura geral, criativos e ágeis para localizar a informação onde ela estiver; a especialização nos detalhes faz-se no interior da empresa. Livrando-se do mito de que educação é "ensinamento", a escola pode ajudar o aluno a formar valores e a aprender como aprender, para que ele construa e reconstrua o conhecimento ao longo da vida. Com isto, a escola repõe sua necessidade e contorna a tendência de ser substituída pelos sistemas de comunicação social e informação e pelos serviços de treinamento das empresas.

He application of the Computation to the production, requires a school wich prepares people with general culture, creativity and agility to localize the information where it was; the specialization in the details is made inside the enterprise. If the school could be free of the myth what the education is only to teach, it can helps the students to form values and to learn how learn, in order to construct and reconstruct the knowledge during their lives. In this case, the school can evidence its own necessity and surround the tendence of its substitution by the social communication and information systems and by the corporation training services.


EDUCAÇÃO PARA A COMPETÊNCIA E A GLOBALIZAÇÃO

Reflexão acerca da globalização e da emergência da Sociedade do Conhecimento e da Informação nos questiona sobre a educação brasileira. Desde a incorporação da Ciência à produção, no século passado, não víamos uma alteração tão radical das bases da vida social quanto o surgimento da Informática e ciências correlatas e a sua aplicação prática à indústria, à agricultura, à arquivologia e a tantos campos quantos são os ramos da produção e as formas da vida social, no parecer de Jorge Gerdau Johannpeter em entrevista com Lurdete Ertel (1995, p. 45-47).

   As formas tradicionais de produção do conhecimento, onde avulta o mundo do trabalho, são agora capitalizadas pela Universidade, transformada em usina do conhecer. Os conhecimentos são sistematizados como informação e locados no ciberespaço, acessível, em tese, a quem tenha um computador à disposição. À medida que acelera o processo de construção do conhecimento e a sua informatização, devemos refletir que o tipo de profissional que será mais procurado pelas empresas no início do século XXI será o "Navegador de Internet". Cabe a pergunta: num sistema educacional que diz formar profissionais para o mercado, que escolas estão, seriamente, preparando cibernautas?
   As empresas necessitam que a escola forme indivíduos de grande cultura geral, criativos e ágeis para localizar a informação onde ela estiver, de preferência antes dos concorrentes. A tendência mundial é que a especialização nos detalhes se faça no interior da empresa, conforme os empresários Gerdau Johannpeter e Luiz Carlos Mandelli:
Daí a necessidade emergente de investimentos em educação. Ao Estado cabe propiciar uma educação básica de qualidade, para que as pessoas possam ter acesso ao processo econômico. Agora, dali para adiante, a educação passa a ser uma questão de investimento individual, em que cada um tem que fazer suas opções. O Estado tem que promover financiamentos e linhas de crédito, mas quem tem de fazer um ajuste permanente às condições dinâmicas da evolução do mercado é o indivíduo ou empresário. As estruturas de educação também precisam ser modificadas, porque as estruturas convencionais já não se ajustam às novas exigências do mercado e dos consumidores (JOHANNPETER, 1995, p. 49).

Dentro deste contexto, as empresas no futuro, em todas as áreas, vão se transformar no que os americanos chamam de learning organizations - organizações de aprendizagem. Empresas que ensinam a toda sua cadeia os detalhes de sua operação e trazem a especialização naquilo que fazem. As empresas que já praticam esse caráter didático na sua atividade têm colhido excelentes resultados. Vejo como algo constante na vida das empresas no futuro o treinamento e o ensino a seus funcionários de detalhes inerentes à sua própria operação (MANDELLI, 1995, p. 62-63).

   Reflitamos sobre a educação e o cotidiano em Porto Alegre. Se pararmos alguns minutos na Avenida Protásio Alves, ao lado do Hospital de Clínicas, veremos algumas pessoas trôpegas ou convalescentes apanhando táxis ou lotações, enquanto irados motoristas de autos particulares estarão buzinando atrás dos táxis e fazendo gestos de impertinência face à demora dos doentes. Eles não têm noção de ética, de solidariedade social? Certamente, todos eles passaram por bancos escolares. Talvez, em tempos recentes, talvez, antes. Não aprenderam as normas da convivência? Mas, era para ensinar? Isto não é função da família? Retoma-se a velha disputa entre as leis do oikós e as leis da pólis. Esta disputa, nem Antígona resolveu (SILVA, 1995). Nem Antígona, nem a nova LDB, diga-se, a título de registro.
   O fato de por-se como sistema de "ensino", informativo, já é questionável (DEMO, 1997). Estando a informação disponível nas nets computadorizadas ou televisivas ou em CD-ROM's, parte da antiga tarefa da escola foi absorvida pelos computadores. Resta saber qual a função da educação atual.
   É preciso questionar não só como se está fazendo educação, mas, especialmente, qual o conteúdo da educação que se realiza. Por quê não pensar em construção de valores, em sistemas de formação, abertos à construção de uma permanente aprendizagem da aprendizagem? Livrando-se do mito de que a escola pode ensinar o que o aluno precisa aprender para a vida; ajudando-o a aprender como aprender, para que ele faça e refaça a aprendizagem daquilo que necessita ao longo da vida, a escola esquiva-se do sucateamento e da substituição in totum pelos departamentos de ensino das empresas e pelos sistemas de comunicação social e informação.
   Parece que o nosso problema, que subjaz às questões visualizadas, diz respeito ao ordenamento dos sistemas educacionais enquanto formadores das competências e das incompetências socialmente desejadas. Dizer competência significa dizer "competência para". A competência é a capacidade de responder a expectativas estabelecidas. Não faz sentido falar em "competência em si" ou em "competência para si". Os sistemas escolares serão competentes para (e se) realizarem ações de reforço aos sistemas econômicos, às suas classes dirigentes. Preparar as incompetências (isto é, as semi-competências) para funcionar como "exército de reserva" do mundo do trabalho pode ser um efeito desejado pelas classes dominantes (FREITAG, 1980, p.118).
   Ao longo da história, a educação é um fazer contingenciado (MANACORDA, 1992), nunca se fez "a educação pela Educação". No Egito Antigo, o sistema escolar mais antigo da linha genealógica da cultura do Ocidente, a educação limita-se a "ensinar a nadar com os filhos do Rei". Numa sociedade à beira de um grande rio, que proíbe ao seu povo aprender a natação, só quem sabe nadar pode dizer a Palavra e a Palavra é fonte de Poder. Quem nada com os filhos do Rei torna-se filho do Rei e diz a Palavra ordenadora da produção e da vida social. A competência que se espera do pedagogo é que ensine aos filhos do Rei, de modo que eles saibam e possam sobre uma maioria que não sabe e não pode.
   A competência, sendo "competência para", pode produzir reservas de entendimento. Se fosse possível colocarmos frente a frente, em debate, dois pedagogos de momentos distintos do mesmo Egito Antigo, diria o mais antigo: "A competência é nadar com os filhos do Rei, cumprir fielmente as determinações do Pai e realizar as tarefas do Palácio"; responderia o menos antigo: "Engano. A competência é dominar os algoritmos da escrita, relatar tudo o que vê, sem tirar nem por. A excelência é o ofício do escriba, que deve, por isto, ser chamado o Ofício dos ofícios".
   Precisamos refletir acerca do papel do educador além da competência e da produção de competências. A competência não livra do equívoco o profissional competente. O europeu branco, ao imbuir-se da excelência da sua fé e da competência da tecnologia da pólvora, que ele domina, destrói nas Américas uma cultura mais avançada que a sua, que, todavia, não conhece a pólvora.
   Na Europa feudal, nem todos são cavaleiros. A educação limita-se a alguns ensinamentos para a maioria do povo. Os camponeses são servos da terra e aprendem com os pais alguns tratos seculares, quiçá milenares, para a produção de culturas de interesse do senhor. Os filhos dos operários, e algumas outras crianças talentosas, moram na casa do seu mestre artesão, com quem aprendem o saber corporativo. Em ambos os casos, é de largo uso a "pedagogia do chicote".
   Os filhos dos nobres preparam-se para a vida de cavaleiros, e, por isto, têm de dominar as técnicas do combate e do debate. Precisam ser criativos, e a sua educação compõe-se de ensino e formação. É-lhes exigido que aprendam a esgrima, a equitação, as técnicas do combate corpo-a-corpo e as técnicas e artes da guerra, para que possam obter o máximo rendimento dos diversos segmentos de um exército e do seu conjunto. Se perdem ou se ganham a guerra, têm de agir como embaixadores, redigindo cláusulas e assinando armistícios. Tudo embalado por toques de valsa e festivais de dança.
   Os saberes da Idade Média, na Europa, já são saberes diferenciados. Cavaleiros e aldeões possuem diferentes competências e, portanto, exige-se competências diversas dos diversos pedagogos.
   Por motivos causais e outros casuais, o panorama europeu no final da Idade Média está assim: 1) a Península Ibérica está adiantada nas técnicas da navegação; 2) a Inglaterra amealha tecnologias e capitais para a implantação das suas fábricas; 2) enquanto a França é uma fábrica de ideologias e práticas políticas inovadoras. Essa "divisão do trabalho" historicamente estabelecida cria as condições para o surgimento de um novo modo de produção e de um novo modo de vida: o Capitalismo e a Modernidade haurem suas raízes na apropriação da prata, do ouro e de bens culturais da população das colônias dos diversos continentes, acrescida da nódoa histórica, indelével e irremovível da escravidão negra. É no contexto desta divisão que os ibéricos singram os mares, trazendo as contradições do Velho Continente para o outro lado dos Oceanos.
   O nosso "descobrimento", a efetivação de uma Colônia lusitana em terras do Brasil, dá-se pela mais monumental "grilagem" de terra de que a História tem notícia, da qual, todos os conflitos que a nossa sociedade passa a viver nos séculos posteriores é decorrência. A ação dos estabelecimentos educacionais da Colônia é realizada através da educação jesuítica, conformista para os povos autóctones, formadora de quadros para a Administração Colonial. Portugal administra a relação Europa-Metrópole-Colônia de modo a não permitir o surgimento de indústria ou comércio local. Pelo sistema do Exclusivo Colonial, os comerciantes portugueses realizam todo o intercâmbio, restando à população residente, junto com as demais colônias nos vários continentes, participar da acumulação primitiva do Capital como simples contribuintes, fornecedores da base monetária do Capital inicial (MARX, 1974, 1981). A competência do sistema educacional, nestas condições, é "amansar" o índio e bacharelar a elite dirigente para executar os planos da Metrópole.
   Numa tribo indígena, todos são competentes. As crianças são competentes para certas coisas, os adultos são competentes para outras coisas. Se um indivíduo cresce cronologicamente, mas não atinge competências adultas, permanece criança e é competente com as crianças, nos misteres de criança. A civilização fragmenta o ser humano: ou se é burguês, ou operário; ou proprietário, ou sem-terra; ou morador, ou sem-teto. Ou urbano, ou selvagem: aí se funda uma educação preconceituosa, em que "a lei da selva" é apresentada como o ruim e a "cidade" o bom1.
   Entretanto, é essa civilização que cria o estupro, os gulags, os Holocaustos.
   A exigência dessa competência para servir interesses alienígenas tem sido a marca da vida social e do sistema educacional brasileiros. Somente nos últimos sessenta anos colocam-se as condições históricas de uma disputa para a busca de novas expectativas de uma outra competência (Freitag, 1980).
   De 1930 para cá, navegamos através de duas ditaduras, uma Guerra Mundial e um pouquinho de democracia. Trata-se de um tempo de "modernização conservadora", no qual se forma uma elite retardatária e sócia minoritária do Capital mundial. Vivemos ainda um modo de produção que faz largo uso de processos produtivos baseados em mais-valia absoluta. Enquanto isto, os países do Centro do sistema apoiam-se especialmente na criação de mais-valia relativa e esta forma de produção tende a globalizar-se e a influir na distribuição social do usufruto da renda, como se pode observar nesta reflexão de Tarso Genro:
O valor trabalho, tomado no seu sentido tradicional, será cada vez mais relativizado nas sociedades altamente desenvolvidas e em algumas atividades o próprio tempo livre será cada vez maior. É certo, também, que o trabalho "produtivo" será cada vez menor e mais repartido entre os vendedores da força de trabalho. Isso exige pensar que não seja justo, portanto, que somente o trabalho, isoladamente, seja a medida absoluta para responder às necessidades de cada sujeito prestador (GENRO, 1995, p. 113).

   Neste sentido, estamos repetindo os esquemas de sempre: nossa elite é caudatária e as benesses econômicas chegam atrasadas e para poucos, enquanto se espera do sistema educacional que prepare as competências locais para ir mudando um pouco, de modo a deixar tudo como está. Assim está sendo com a nova LDB que, neste aspecto, repete a anterior, do início da década de sessenta, em que o sentido da Lei é dado por Lacerda e os complementos por Mariani (Freitag, 1980:58-59).
   Torna-se tarefa difícil a ação dos educadores para realizar uma educação para a inovação social pela via daquilo que se convencionou chamar as "brechas" da Lei. Trata-se mais de arrombar portas do que de saltar janelas, já que a LDB está aí para travar iniciativas. Buscar formas de fazer educação para a felicidade e não só para a competência profissional, em presença da LDB, é como uma extenuante tarefa de Sísifo.
   No entanto, "é preciso imaginar Sísifo feliz", na fala de Camus (1991). Se a pedra rola encosta abaixo, Sísifo desce sem empurrá-la. Neste momento, ele é livre e pode ser feliz. Por quê apressar-se para descer? Melhor será parar para cumprimentar os pastores de cabra e apreciar o seu folclore. No seio de um sistema de adestramento de mão-de-obra, o "professor" pode oportunizar a felicidade própria e a dos seus "alunos".

COMPETÊNCIA PARA SER FELIZ


   A minha argumentação até aqui pode induzir a que se possa pensar que estou defendendo a desinformação ou a formação de incompetências no sistema educacional. O que defendo é o oposto. A educação brasileira se especializa desde os seus primórdios num sistema dual de formação de competências (os filhos da elite) e de incompetências e semi-competências (os filhos das classes baixa e média baixa). É chegada a hora dos educadores romperem com este papel funcional que a educação exerce até aqui e "ensinar a nadar aos que não são filhos do Rei". Estatui-se uma nova competência.
   A minha proposta é a busca de uma nova competência, em que a educação se proponha à formação, à criação de novos valores de solidariedade, de compreensão, de criatividade. Não se trata de abandonar o ensino, mas, de que ele se combine à formação. Trata-se de transformar os "estabelecimentos de ensino" propostos pela LDB em estabelecimentos de educação. Trata-se, em primeira e última instâncias, de transformar o "sistema de ensino" da proposta governamental em sistema educacional. A nova competência deve ensinar muito mais do que a antiga. Trata-se de saber se o que queremos com este ensino é a reprodução do conhecimento, sua reprodução crítica ou a criação de conhecimento novo.
   Certamente, queremos as três. Mas, diferentemente do ancestral egípcio que pretendia que "educar é ensinar algorítimos", devemos dizer que "educar é oportunizar criatividade e iniciativa". A criação de conhecimento novo tem de ser o objeto da educação. Se, para isto, é necessário alguma reprodução do conhecimento antigo (e é), que ela seja feita, na medida necessária. Há um acúmulo de conhecimento, patrimônio da humanidade, que precisa ser colocado à disposição do educando.
   O problema é como colocá-lo: há aí uma questão de filosofia, de método e de administração educacionais.
   De filosofia, porque, se continua importante que o educando saiba da existência do acervo antigo, não é mais possível transmitir-lhe todos os detalhes. Se fôssemos tentados a fazê-lo, mesmo os duzentos dias letivos da nova LDB seriam insuficientes e não sobraria tempo ao "aluno" para a crítica do conhecimento e a criação de conhecimento novo. É necessário, então, que se reflita o que é fundamento e o que é norma ou decorrência. Um rigoroso trabalho filosófico deve ser feito pelos educadores, buscando definir o fundamental a ser ensinado, em cada faixa etária. Educação é isto e: muita fantasia, muita imaginação, muita criatividade.
   De método, porque, definida a filosofia, entramos no "como", propriamente dito. Talvez possamos dividir esse momento em duas partes. Na primeira, a idéia de algorítimo poderia ser reapropriada, recriada. Não seriam mais "algorítimos para saber" como tem sido a educação nos últimos milhares de anos, isto é, desde a sua invenção até hoje. As contratendências educacionais que se afirmam perante a humanidade, em diversos momentos destes anos todos, nos autorizam a pensar em outras possibilidades. Podemos pensar em "algorítimos para aprender a aprender". Na segunda parte, a questão se torna administrativa.
   De administração, pois, sabidos "o quê" e "o como do quê", é preciso investigar e definir "o como do como". A idéia de algorítimos para aprender a aprender não é um descompromisso com o ensino e a informação do educando, mas tem que significar a sua plena viabilização. Se nos colocamos no ponto-de-vista de "ir ao futuro" para de lá olharmos o presente e pensarmos a educação, podemos ver que a educação brasileira não está preparando nem competência profissional nem cidadania para o século XXI.
   A vulgarização de uma idéia a pretexto de defendê-la é o pior ataque. No passado recente, houve quem pensasse que ser crítico em pedagogia é só colocar os educandos em círculo e não falar em uva para menino pobre, porque os pais não têm dinheiro para comprá-la. Isto não é "método Paulo Freire" e nunca foi. Quem tentou ser freirista assim e depois desistiu, tentou e desistiu sem nunca ter entendido Paulo Freire.
   Tomemos um exemplo de falso freirismo: 1) eu sou professor e chego em sala de aula com um polígrafo ou apostila ou xerox do prefácio de algum livro que fale sobre informática e conhecimento; 2) coloco os alunos em círculo e os faço debater o que está escrito ali; 2) penso que o meu trabalho e o da escola estão concluídos: "agora, que estão todos algoritimados para aprender a aprender, já posso descansar". Nem Paulo Freire nem a educação têm nada a ver com a atitude desse professor. Pois, de fato, o trabalho educativo estaria sendo começado e não terminado.
   A administração escolar não deve ser um corpo estranho à coletividade da escola, que só serve para cortar verbas, clamar por eficiência e reclamar do desperdício. Uma educação como a que estou propondo só pode ter sentido se a biblioteca da escola for farta e atualizada; se a "CD-ROMteca" contiver as enciclopédias, os dicionários, as revistas e os jornais; se a "arquivo.doc-teca" contiver os trabalhos dos educandos de turmas anteriores, os dos próprios professores e a possibilidade de, em tempo real, obter os trabalhos dos pesquisadores de outras instituições, participar de conferências nacionais e internacionais. Idem para laboratórios, instrumentos, equipamentos.
   Uma administração escolar consciente deste seu novo papel dará grande importância ao Conselho Escolar e às formas de organização específicas do exercício da cidadania no cotidiano escolar. Não apenas assimilará, mas, procurará, convênios com entidades estatais e da sociedade civil com as quais os estudantes intercambiarão.
   Minha proposta parte de Paulo Freire, Giroux, Boaventura, Apple, Frei Betto, Brandão, Gadotti, Saviani e de outros autores na linha de uma pedagogia crítica. O que proponho é que a educação permita aos indivíduos a busca da felicidade, da auto-estima. Indivíduos felizes, capazes de iniciativa e de inovação social, saberão trabalhar os saberes específicos para o bom desempenho na vida profissional.
   Nesta ótica, educar é o permanente reconstruir do conhecimento do mundo. A nova competência educacional será, então, o agir do pedagogo na relação com o educando, o estabelecimento de interfaces educacionais onde se faça a desconstrução-reconstrução do conhecimento. "Professor" e "aluno" recriam sua cosmovisão de acordo com os objetivos que as suas subjetividades reconhecerem como adequados para o existir da vida individual no coletivo da vida em sociedade: é ler nos livros e na vida para a construção de uma ética e de um agir-no-mundo de acordo com esta ética construída.
   Faz-se necessário o estudo das relações entre o processo educativo e as mediações culturais na criação de linguagens contra a exclusão social. Falamos de educação para a cidadania, da criação de competência para ser feliz e só para os individualistas possessivos a cidadania e a felicidade podem acontecer em presença da exclusão (Tucker, 1983)2. Mas, isto será cidadania e felicidade ou mero solipsismo?
   Este é um campo lacunar, que só recentemente vem atraindo a atenção da pedagogia. A expansão da dialética a outras áreas do conhecimento humano além da Filosofia e da Economia Política propicia um entendimento qualificado dos processos sociais que formam os sujeitos da Educação, mas provoca, às vezes, um reducionismo na compreensão da experiência humana e de suas conexões com as atitudes educacionais.
   A busca dos "por quê" do modo de produção e de sua estrutura de classes subsume os indivíduos das classes populares na massa da própria classe, descuidando-se, o pesquisador e o político, da apreensão dos "como": como as subjetividades atingidas pelo fazer do educador se comunicam com o processo de aprendizagem, criando relações intersubjetivas nas situações classistas e policlassistas e nas situações de educação; como a cultura do educando interage com as culturas dos demais educandos e do educador; como se produz linguagens de interesse popular no processo educativo.
   A idéia de mediação cultural no processo tem sido um tanto esquecida, nos primeiros momentos do estudo das relações entre revolução e educação. Cria-se uma "dialética metafísica", uma escolástica em nome de Marx ou de Gramsci ou de quem seja, que tem servido mais para contraposições maniqueístas entre distintas linhas educacionais do que para a apreensão dos significados da educação nos seus contextos.

MEDIAÇÕES CULTURAIS NO PROCESSO EDUCACIONAL


   A produção de linguagens contra a exclusão, capazes de sustentar ações de emancipação social, só pode ser obra dos excluídos, sabedores dos seus desejos. Cabe à educação oportunizar aos educandos oriundos das classes populares, que são a maioria, conhecimentos acerca do real, dos modos de produção antigos e atuais, dos modos de vida de ontem e de hoje e das perspectivas de futuro, facultando-lhes construir linguagens que galvanizem milhares, milhões, de pessoas. A utopia destas linguagens tem de falar dos desejos dos seus construtores e das possibilidades de construção do sonho. assim os seres humanos concretamente existentes poderão acreditar na utopia e engajar-se nela, em número suficiente para produzir inovações sociais.
   Tais linguagens são construídas por indivíduos pertencentes à humanidade e a determinadas classes, exploradas, oprimidas, excluídas, convencionalmente chamadas classes populares. Cada indivíduo traz consigo uma "memória perigosa" da sua cultura de classe e de povo e uma cultura afirmada, européia, globalizada. A ação intersubjetiva oportuniza e requer mediações culturais. Nos procedimentos da educação, as mediações entre as culturas de classe do educador e do educando cumprem um papel na produção das linguagens contra a exclusão, para além dos limites das pedagogias gerais e dos métodos utilizados.
   Falar em relações intersubjetivas implica em reconhecer a dimensão subjetiva das pessoas que participam da classe, como instituinte da "subjetividade coletiva". Os desejos, hábitos, costumes, valores, participam da cultura dos grupos sociais. Um povo, uma classe, um segmento social, têm cultura. Os indivíduos que participam de tais grupos constróem suas idiossincrasias culturais e são essas idiossincrasias que interagem nos momentos do coletivo.
   O "aluno" em sala de aula traz consigo traços da "subjetividade da sua classe", da "subjetividade do seu povo", da "subjetividade do seu grupo", ao mesmo tempo que a sua subjetividade de indivíduo. Cabe ao "professor" fazê-las emergir. Amplia-se, neste tempo, o campo conceitual da subjetividade.
   Os processos de construção dos projetos comuns, dos desejos coletivos, não elidem os projetos e os desejos dos indivíduos, às vezes alimentados por uma "memória perigosa" de um tempo de autonomia cultural. Um avô na rede, relatando a história do seu povo ao neto, um pai sentado na esteira, com o filho no colo, mostrando os símbolos da família: esta relação semiotiza a vida do indivíduo na sociedade abrangente (SALES, 1994; MELIÀ, 1996). O índio é índio com uma filmadora num shoping center.
   A colonização nos "europeiza" a todos, mas a apropriação do europeísmo se faz de modo diferenciado nos diversos segmentos sociais. São essas culturas diferenciadas que interagem no processo educacional. As linguagens contra a exclusão, produzidas no contexto, dizem respeito ao método educacional trazido pelo "professor", mas, também, às mediações culturais que aí ocorrem. O educador deve estar atento às relações entre um e outras.
   O educador tem de construir a "ponte dos tempos" como pedagogia. Ele tem de estar no futuro, para trabalhar proficuamente o cotidiano do educando. Talvez seja produtivo fazermos uma interlocução com Cornelius Castoriadis para um melhor entendimento do processo de construção desse "futuro do presente":
Sempre foi pensando/supondo/criando um tipo de ente que os filósofos, cada vez, pensaram alguma coisa do ser. Foi fazendo uma figura que fizeram ser um horizonte. E isso é ainda uma faca de dois gumes. Criando/supondo outro sentido de: ser, prenderam-no à própria figura que acabavam de criar/supor. De que outra forma poderia ser? (Castoriadis, 1987:23).
A criação faz-se como deiscência em que figura e fundo, cada um pelo outro e na sua relação com o outro, vêm a ser ao mesmo tempo. A figura histórica e seu horizonte são criados juntos.
Esta criação sempre se relaciona com o que já é - relação que depende do que é criado. A criação do pensamento torna possível o que não o era, ou não desta forma. Ela faz ser: ser como pensável o que... O quê? O que sem ela não seria pensável? Ou o que sem ela não seria? Cada uma dessas duas vias reconduz à outra. (CASTORIADIS, 1987, P. 24).

   O estudo das mediações culturais nas experiências educacionais específicas pode trazer aportes à nova educação que se propõe. Não se trata, apenas, de fazer etnografia ou de fazer história. O que se quer é partir da etnografia e da história das experiências e submetê-las à crítica filosófica para a formulação de novas referências para uma educação que quer viabilizar a libertação humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CAMUS, Albert. Le mythe de Sisyphe. Saint Amand-France: Gallimard, 1991.
CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do Labirinto I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. (Rumos da cultura moderna, 53).
DEMO, Pedro. A nova LDB: ranços e avanços. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1997.
FREITAG, Bárbara. Escola, Estado e Sociedade. 4. ed. revista. São Paulo: Moraes, 1980. (Educação Universitária).
GENRO, Tarso. In: BRITTO, Antônio et al. Os construtores do futuro: Entrevistas com Lurdete Ertel. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
Johannpeter, Jorge Gerdau. In: BRITTO, Antônio et al. Os construtores do futuro: Entrevistas com Lurdete Ertel. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
MANDELLI, Luiz Carlos. In: BRITTO, Antônio et al. Os construtores do futuro: Entrevistas com Lurdete Ertel. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
MANACORDA, Mario Alighiero. História da educação: da antigüidade aos nossos dias. 3. ed. São Paulo: Cortez:Autores Associados, 1992.
MARX, Karl. A acumulação primitiva do Capital. Porto: Escorpião, 1974. (O homem e a sociedade, 12).
______. A origem do Capital: a acumulação primitiva. 4. ed. São Paulo: Global, 1981.
MELIÀ, Bartolomeu. Mito e Educação. Estudos Leopoldenses, v. 32, n. 150, p. 93-100, nov-dez 1996.
SALES, Noêmia Pires de. Os Tembé no Alto Rio Guamá: reelaborações étnicas - identidade e território. Belém, 1994. (Relatório de pesquisa, versãoreliminar).
SILVA, Maritza Maffei da. Antígona e Sócrates - A Filosofia no banco dos réus: uma busca jus-filosófica de desmistificação das leis. Santa Maria: UFSM, 1995. (Dissertação de Mestrado, Filosofia).
TUCKER, D. F. B. Marxismo e individualismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

1 Para isto, deturpa-se o conhecimento, instilando nas crianças a ideologia de que a "lei das selvas" é a "lei do mais forte". Na natureza e nas sociedades vinculadas fortemente a ela, o que vigora é a "lei do mais apto". Se vigorasse a "do mais forte", um fungo não mataria um elefante.
2 Tucker identifica três teorias sobre o individualismo: o possessivo (Locke, Nozick), o liberal (Rawls) e o radical (Macpherson). Da discussão das três, mas, apoiando-se especialmente em Macpherson, Tucker elabora sua proposta de democracia radical.